Há poucos dias, em 18 de novembro, cidadãos da Suécia começaram a receber um panfleto de cerca de 30 páginas em suas casas intitulado “Se a Crise ou a Guerra Chegar” (“Om kriser eller kriget kommer”). Os governos da Noruega e da Finlândia também fizeram um material similar sobre como se preparar para uma eventual situação de crise ou que envolva uma guerra.
No caso finlandês, trata-se de uma página na internet. Ainda que estejamos em um momento de tensões crescentes na Guerra da Ucrânia e do confronto indireto entre Rússia e OTAN, e que falas como as do Ministro da Defesa da Suécia, no mês passado, sugiram que estes países estejam de fato se preparando para uma guerra “iminente e inexorável” com a Rússia, é preciso cautela na análise para evitar um alarmismo desnecessário e escapar do imediatismo das ações ponderando algumas questões.
A escalada de tensão na guerra, por procuração, da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) contra Rússia nos campos de batalha da Ucrânia modificou a natureza da guerra. Isso foi mais sentido especialmente depois de o presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, levantar as restrições ao emprego de misseis de alcance intermediário em território russo.
Além disso, a atualização da doutrina de emprego do armamento nuclear sancionada pelo presidente Vladimir Putin, da Rússia, os dois lançamentos de mísseis estadunidenses e britânicos lançados pela Ucrânia em território russo e a resposta de Putin, com um inédito míssil hipersônico de alcance médio, batizado “Oreshnik”, emudeceram recentemente a Europa e apavoraram seus cidadãos, justificando medidas extremas de cuidado e proteção dos mesmos.
Estratégias de sobrevivência a diversas crises
Primeiramente, entre os aspectos a serem ponderados, Finlândia, Suécia e Noruega preparam-se para um inverno que pode trazer consigo consequências catastróficas, como as que assolam o planeta. Note-se que em momento algum os materiais produzidos por esses países citam a Rússia como principal ameaça ao país e nem sequer mencionam a guerra da Ucrânia. Em vez disso, trata-se de documentos que buscam prover a sociedade civil de estratégias de sobrevivência em um contexto muito mais amplo de emergência, como é o caso da Finlândia — que inclui ataques cibernéticos e o uso de patógenos — e da Noruega, que menciona os eventos climáticos extremos.
Em segundo lugar, os países nórdicos possuem tradição no que se refere ao preparo de seus cidadãos para situações de grande calamidade ou guerra. A Suécia distribuía estes panfletos a seus cidadãos durante a Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria até os anos 80 do século passado, bem antes do seu recente ingresso na OTAN. Desde então, retomou a distribuição desse tipo de folheto com alguma frequência, sendo esta sua sexta edição. A Noruega, por sua vez, já havia publicado sua versão deste folheto em 2018.
Com relação à possibilidade de um ataque russo a um desses países, ou a todos eles, trata-se de uma perspectiva unilateral do conflito que enxerga Moscou como um ator imprevisível, irascível e voraz; à procura de escalonar a guerra na Europa e conquistar novos territórios, sem a definição de um objetivo político propriamente dito.
Não obstante, do ponto de vista russo, o avanço da OTAN para suas fronteiras desde começo do presente século e o emprazamento de tropas e mísseis americanos em países do extinto Pacto de Varsóvia é percebido como uma ameaça existencial, o que justificaria, talvez, a distribuição de panfletos como aqueles entre os moscovitas.
A decisão de adesão da Suécia e Finlândia à OTAN, abandonando o histórico posicionamento de neutralidade, é vista pelo Kremlin como mais um avanço da aliança ocidental em direção a suas fronteiras, o que constitui para a segurança russa sua principal ameaça.
Soma-se a isso a compra pela Finlândia de 64 jatos F-35 dos Estados Unidos antes mesmo do início da guerra na Ucrânia, e o fato de que Estocolmo e Helsinque firmaram acordos de cooperação em defesa com Washington que facilitam o acesso de forças militares estadunidenses às bases localizadas no território destes dois países, incluindo em instalações próximas à fronteira finlandesa com a Rússia.
Em conjunto, todos esses elementos contribuem para a percepção do governo russo de que o Ártico está se constituindo em um possível flanco de ataque da OTAN, já que todos os outros sete países do Ártico – EUA, Canadá, Islândia, Dinamarca, Noruega, Suécia e Finlândia – fazem parte da aliança militar.
Consequentemente, o governo russo, por meio de decreto de Putin de fevereiro de 2024, retirou da Frota do Norte o status de distrito militar que detinha desde 2021, e dissolveu o distrito militar ocidental, que havia sido criado a partir da fusão dos distritos de Moscou e Leningrado, em 2010, para restaurar os dois distritos de forma independente. Decisão estruturante da organização da força que enfatiza a importância da região do Mar Báltico na estratégia de defesa russa.
O longo histórico de guerras entre o Império Russo e a Suécia, bem como a fato de a fronteira entre Finlândia e Rússia se estender ao longo de mais de 1.300 km, são utilizados como argumentos que alimentam o temor destes países em relação a uma invasão russa. Naturalmente, todo país possui o direito de pensar sua política de defesa de maneira autônoma e soberana e decidir sobre quais são suas principais ameaças. Não obstante, a razão para uma efetiva eclosão de um conflito entre Rússia em um ou mais países nórdicos não é consequência do histórico de guerras, nem da proximidade geográfica e extensão das fronteiras ou do alegado ímpeto expansivo de Vladimir Putin.
Em contrapartida, a possível escalada de um conflito dar-se-ia em razão de atitudes tomadas por ambos os lados que poderiam ser entendidas como ameaças pelos respectivos governos, gerando o paradoxo da segurança, segundo o qual os países, ao buscarem aumentar sua segurança, tornam-se ameaças aos olhos dos seus vizinhos ao serem percebidos como potencialmente agressivos.
Nesse sentido, a decisão do governo Biden de autorizar o uso de armas de longo alcance – como os mísseis ATACMS – contra o território russo, e a publicação de uma nova doutrina nuclear pelo Kremlin como resposta, aumentam a tensão entre as partes e requereria a procura de uma mesa de diálogo e a tentativa de conciliação política — se o objetivo é o fim da guerra na Ucrânia e a paz no continente europeu e não a decadência da hegemonia e/ou o mero enriquecimento das indústrias de armamento.
Possibilidades a curto e médio prazo
Por fim, consideramos improvável “ceteris paribus” (que todo o resto se mantenha igual, em tradução livre) um ataque iminente de tropas russas nos territórios dos países nórdicos por duas principais razões.
Em primeiro lugar, qual seria o objetivo político de tal movimento? O atribuído caráter impulsivo de Putin não se constata na parcimoniosa atitude com que leva a guerra na Ucrânia e sua ponderação nas respostas. Por hora, não parece haver um motivo real que justifique a necessidade ou interesse russo por iniciar uma invasão à Europa.
Além disso, com a grande mobilização das tropas russas no teatro de operações ucraniano, a abertura de uma segunda frente de guerra, e contra a OTAN, não parece ser a melhor estratégia. Ainda, não parece haver, até o momento desta escrita, a consideração por parte dos sistemas de inteligência dos países nórdicos de que um ataque russo seja iminente.
Quando a Finlândia entrou na OTAN, Putin acionou o estado de alerta estratégico nessa fronteira, o que delata uma atitude reativa defensiva, e não provocativa. Assim, é preciso se perguntar se o alarme gerado por eventuais notícias, ao servir à venda de informação para um público ávido de novidade, não acaba por contribuir para inflar ainda mais os ânimos entre as partes e gerar desconfianças sobre os reais desdobramentos mais prováveis de acontecer a curto e médio prazo. Lembrando que, contradizendo a falácia latina “si vis pacem, parabelum” (se quer paz, prepare-se para a guerra), se preparar para a guerra normalmente a precipita.
Hector Luis Saint-Pierre, Professor Titular em Segurança Internacional e Resolução de Conflitos e vice-coordenador do Instituto de Políticas Públicas e Relações internacionais (IPPRI), Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Getúlio Alves de Almeida Neto, Doutorando do Programa Interinstitucional (UNESP/Unicamp/PUC-SP) em Relações Internacionais San tiago Dantas e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, Universidade Estadual Paulista (Unesp)
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