O caso da contaminação pelo vírus HIV em seis pacientes transplantados no Rio de Janeiro é chocante não apenas pelos efeitos na saúde desses pacientes, mas também por reavivar um antigo trauma coletivo e colocar mais uma vez em questão a política e serviço de saúde nos contratos público-privados no SUS.
O ano era 1988 e o Brasil enfrentava uma grave crise na gestão dos bancos de sangue. A contaminação por HIV estava em ascensão, afetando diretamente o sistema de saúde e causando uma forte pressão sobre as instituições públicas e privadas. Uma das histórias mais emblemáticas deste período foi a morte do cartunista Henfil, e posteriormente seu irmão, o sociólogo Betinho, ambos contaminados por HIV após uma transfusão de sangue para tratamento da hemofilia, doença hereditária que acometia os irmãos. Esses episódios não só revelaram a falência dos bancos de sangue, mas também trouxeram à tona a urgência de se estabelecer políticas de controle mais rigorosas, que viraram padrão em todo mundo após casos similares na Inglaterra e França..
Nos últimos 25 anos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ganhou capacidade institucional para regular de maneira eficaz os protocolos de transfusão de sangue e transplante. Esse desenvolvimento foi crucial para garantir que as práticas seguissem padrões de segurança e qualidade, prevenindo novas tragédias de contaminação.
Entretanto, mesmo com os avanços, falhas pontuais, como contaminações isoladas ou falhas no cumprimento dos protocolos, continuam a reavivar antigos medos e a revelar vulnerabilidades no sistema. Escândalos de má gestão ou corrupção envolvendo prestadores de serviço para o SUS minam a percepção de que o sistema de saúde e as reformas regulatórias são suficientes para garantir a segurança dos pacientes.
Questões Políticas nas Parcerias entre Setor Público e Privado
O envolvimento do setor privado na prestação de serviços de saúde para o sistema de saúde cresceu nas últimas décadas após a aprovação da regulamentação da publicização na saúde pública no Brasil por meio das Organizações Sociais (OS), estabelecida pela Lei nº 9.637/1998. Essa legislação criou o marco jurídico para a transferência da gestão de serviços públicos não exclusivos, como saúde e educação, para entidades privadas sem fins lucrativos, as chamadas Organizações Sociais.
A lei permite que o Estado celebre contratos de gestão com essas organizações para administrar hospitais, unidades de saúde, e outros serviços de saúde pública. O objetivo é permitir maior flexibilidade na administração desses serviços, com a possibilidade de aplicar modelos de gestão privados e de otimizar os recursos públicos. Assim, essas parcerias buscam suprir a falta de infraestrutura e recursos no setor público. No entanto, a posterior expansão traz questões políticas importantes relacionadas à governança, regulação e interesses econômicos.
O Termo de Referência para a contratação de uma empresa especializada na realização de exames de análises clínicas e de anatomia patológica em hospitais administrados pela Fundação Saúde do Estado do Rio de Janeiro, vencido pela empresa PCS Lab Saleme, não apresenta justificativas detalhadas para a necessidade de terceirização do serviço, além de argumentar que se trata de uma atividade relevante para o diagnóstico clínico.
A ausência de justificativas claras e específicas revela fragilidades na transparência e nos processos de tomada de decisão, levantando dúvidas sobre a fundamentação técnica e os critérios adotados nessa contratação.
No caso da contratação do laboratório PCS Lab Saleme há evidência de que há interesses partidários envolvidos e, possivelmente, pressões econômicas, que comprometem a implementação de um modelo seguro de prestação de serviços de saúde. Como resultado temos uma situação em que a saúde pública se vê como refém de um contrato mal executado e de interesses terceiros que não necessariamente colocam a segurança do paciente em primeiro lugar.
No contexto do Rio de Janeiro, o cenário político torna-se ainda mais complexo. Desde 2016, os hospitais estaduais estão sob intervenção federal devido a uma série de irregularidades, que incluíram denúncias de corrupção, má gestão, e desvios de recursos públicos. A intervenção se deu após a crise financeira do estado, que comprometeu a capacidade do governo fluminense de manter o funcionamento adequado dos hospitais.
Mecanismos de controle
Com a crescente terceirização de serviços essenciais, como exames e procedimentos médicos, é crucial fortalecer tanto os processos de contratação quanto os mecanismos de monitoramento e fiscalização para assegurar que as decisões sejam baseadas em critérios técnicos, transparentes e voltados para o interesse público.
As justificativas para a terceirização de serviços devem ser claras e bem fundamentadas. Embora isso não elimine completamente a possibilidade de interesses político-econômicos influenciarem a prestação do serviço, ao menos cria salvaguardas que podem minimizar essas interferências e garantir uma maior transparência no processo.
Além disso, é essencial que os prestadores de serviços contratados cumpram os padrões de qualidade exigidos pela Anvisa e pelo Ministério da Saúde. A responsabilidade pela fiscalização desses estabelecimentos recai sobre os departamentos de vigilância sanitária das secretarias estaduais de saúde, que devem garantir que os serviços terceirizados funcionem de acordo com as normas, priorizando a segurança dos pacientes.
Por fim, o movimento de AIDS no Brasil, que historicamente desempenhou um papel crucial na resposta à epidemia e na criação de políticas públicas de prevenção e tratamento, deveria, no contexto da contaminação por HIV dos seis transplantados, atuar por maior transparência nos contratos do SUS no Rio de Janeiro, especialmente em serviços críticos como transfusão, transplantes e exames de sangue. Essas organizações devem oferecer apoio jurídico e social às vítimas, além de promover campanhas de conscientização sobre os riscos das falhas nas contratações de serviços privados.
Elize Massard da Fonseca, Doutora em Política Social e Professora, Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP) e Guilherme Nogueira Bittar Celestino, Doutor em Estudos Brasileiros e pesquisador de jornalismo científico, Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP)
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