Não possuir carro é encarar perrengues e ainda se sentir inferiorizado. Dia desses, para ir a um evento cultural, chamei um uber, como sempre faço (uber com inicial minúscula mesmo, para ser genérico igual a todo mundo). Costumo puxar conversa com os motoristas para saber das novidades, da demanda, do porquê da demora.
Desta vez, em meio à prosa, recebi uma notificação no celular. Era mensagem de uma casa de apostas online e, de imediato, manifestei minha aversão a esta atividade: “Deveria ser alvo de duras regras por parte do governo”. Pronto. Foi a senha para o jovem “empreendedor” soltar o verbo.
- Discordo totalmente. Não aceito interferência do Estado em minha vida.
- Mas…
- Não tem mas. Eu trabalho, ganho meu dinheiro, não dependo de governo.
Ainda tentei argumentar:
- Nem todos têm a oportunidade que você …
- Oportunidade a gente faz. Interferência do Estado, só atrapalha. Ajuda do governo, só sustenta gente folgada.
Surpreso com a retórica feita metralhadora, incisiva e bem articulada, fechei o zíper da boca, no restante do trajeto só ouvi. - Blá-blá-blá…
E enquanto ele falava, fui tomado pelo sentimento de inferioridade e inveja do empreendedor jovem e tão bem-sucedido, que paga médico particular ou plano de saúde para toda a família e não depende do SUS. Antes de pegar o primeiro passageiro do dia, deixa os filhos em colégio particular, diferente das crianças que vão para escola pública porque os pais que não fazem a oportunidade. Deve ignorar o INSS para fins de aposentadoria e investe todo mês nada menos que mil reais em previdência privada.
Segurança pública? Que nada. Deve ter uma 380 cheia de balas no porta-luvas, mas para tal precisa ter registro e porte de arma, expedidos pelo Estado. Ou será que anda com uma Magnum 357, de uso restrito, e neste caso sem a interferência do Estado? Seja lá o que for, nunca devemos contrariar um homem armado.
E tome blá-blá-blá.
Meu destino não era tão distante, mas o suficiente para, ainda dentro do carro, me lembrar que neste mês a reforma trabalhista completa sete anos. A reforma foi uma chuva de bênçãos na vida de pessoas arrojadas iguais àquele jovem motorista, pois destruiu direitos trabalhistas e previdenciários, obrigando muitos pais de família a se tornarem empreendedores, ainda que de mentirinha.
(*) Antônio Reis é jornalista em Araçatuba, fotógrafo diletante e ativista cultural.