A descoberta e o desenvolvimento de novos medicamentos são processos, tradicionalmente, muito lentos, caros e altamente arriscados. Muitas vezes, após anos identificando substâncias terapêuticas, as pesquisas acabam interrompidas porque falham nos testes de toxicidade, ou apresentam efeitos colaterais que poderiam ter sido evitados de forma antecipada com uma compreensão mais clara dos alertas estruturais ou alertas tóxicos das possíveis toxicidades desses novos compostos.
As pesquisas do nosso Laboratório de Sistemas Complexos, no Departamento de Química, do Centro Técnico Científico, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CTC / PUC-Rio), são desenvolvidas tendo em vista essa problemática.
Recentemente, elaboramos uma nova metodologia, usando Inteligência Artificial Explicável, que nos permite analisar grandes volumes de dados toxicológicos que conduzem a avanços significativos para o desenvolvimento de novos medicamentos em diversas áreas da medicina.
Diferentemente da IA tradicional, que muitas vezes funciona como uma “caixa preta” com processos internos obscuros, a Inteligência Artificial Explicável trabalha com algoritmos mais transparentes, que permitem obter conhecimento das características mais importantes do sistema e como elas se relacionam. A Inteligência Artificial Explicável (também conhecida pela sigla IAE) é uma IA em que os caminhos que levaram aos resultados apresentados na solução proposta por ela podem ser melhor compreendidos por nós, humanos.
O método, portanto, explica melhor como funcionam as interações das substâncias químicas no organismo. Isso aumenta consideravelmente a confiança e a precisão dos pesquisadores ao interpretar esses sistemas. Assim, conseguimos fornecer explicações claras sobre quais características específicas das substâncias levam a determinadas propriedades biológicas, ou toxicidade.
Com essa tecnologia, já pudemos identificar partes específicas das moléculas que influenciam sua toxicidade ou eficácia terapêutica. Isso não apenas acelera a identificação de novas moléculas ativas promissoras para tratar uma certa doença, mas também melhora a segurança e a eficácia dessas moléculas no nosso organismo.
Aplicações no cérebro
Em nossos estudos recentes, publicados na ACS Chemical Neuroscience da American Chemical Society, utilizamos esse método para melhorar a entrada de medicamentos no cérebro. Isso é muito relevante para o tratamento de diversas condições, como dores de cabeça, doenças emocionais, doenças neurodegenerativas, meningites e até cânceres.
Um dos grandes desafios da medicina moderna é a necessidade de os medicamentos atravessarem essa intrincada barreira no cérebro. Conhecida como barreira hematoencefálica, é uma membrana que funciona como um filtro, protegendo o Sistema Nervoso Central de infecções e substâncias tóxicas, mas que também impede a passagem de 98% dos medicamentos em potencial.
Nós pudemos identificar moléculas ativas contra doenças do cérebro e explicar por que elas conseguem chegar ao cérebro. Esse avanço poderá, potencialmente, revolucionar a forma como desenvolvemos novos medicamentos para tratar essas condições, oferecendo esperança a cerca de 3,4 bilhões de pessoas que possuem alguma doença neurológica.
A barreira hematoencefálica é composta principalmente de gordura. Portanto, certos compostos que têm mais afinidade ou capacidade de se dissolver em substâncias gordurosas tendem a ter mais facilidade para atravessá-la e chegar ao cérebro. No entanto, nem sempre essa afinidade é o suficiente. Nossos resultados explicam que a influência de alguns grupos químicos interfere nessa afinidade.
Por exemplo, grupos contendo nitrogênio desempenham um papel crucial nessa permeabilidade. Alguns desses compostos são encontrados em medicamentos conhecidos, como a cloroquina, usada para tratar malária, a anfetamina, um medicamento estimulante, e alguns analgésicos opioides.
Também observamos que, em medicamentos como os corticosteroides, usados para tratar inflamações, a presença de átomos de flúor e cloro pode aumentar a permeabilidade desses compostos. Eles aumentam a capacidade dessas moléculas se dissolverem em gorduras, facilitando a sua passagem ao cérebro.
Compostos tóxicos
Em outro trabalho recente, publicado na revista Molecular Systems Design & Engineering da Royal Society of Chemistry, aplicamos essa metodologia para compreender melhor o que faz algumas substâncias, potencialmente, induzirem mutações genéticas que podem causar câncer. Elas devem, portanto, ser evitadas no desenvolvimento de medicamentos.
Nossa análise confirmou a relevância de compostos já conhecidos como causadores de mutações, como os usados na fabricação de corantes, óxidos de amina encontrados em shampoos, condicionadores, e detergentes, epóxidos para fabricar resinas epóxi e vários plásticos, e nitrosaminas encontradas em cerveja, peixes, e derivados da carne e do queijo preservados com conservantes.
Além disso, identificamos vários outros compostos, incluindo alguns que fazem parte de corantes, amplamente usados na produção de produtos químicos (aminas aromáticas). Outros estão presentes na fórmula de antigos analgésicos à base de acetanilida, que já saíram de circulação por terem efeitos colaterais (amidas aromáticas).
Também observamos estruturas comumente encontradas em explosivos (nitrocompostos), fungicidas (carboxamidas), agentes de conservantes químicos (azidas) e na fumaça de cigarro, de churrasco e alimentos grelhados (hidrocarbonetos aromáticos policíclicos com uma região de baía).
Essas estruturas foram consistentemente encontradas em todos os conjuntos de dados analisados, mostrando padrões claros que influenciam a sua classificação como mutagênicos.
Outras aplicações
Esse método tem se mostrado muito útil em diversos campos da toxicologia. Nosso grupo está finalizando um outro estudo na mesma linha, que busca identificar por que algumas substâncias com as quais entramos em contato podem ser reconhecidas como hormônios por nosso corpo (chamadas de disruptores endócrinos).
Algumas estruturas já conhecidas são os esteroides encontrados em anabolizantes, anticoncepcionais e medicamentos para asma. E também os inseticidas (como DDT) e compostos utilizados na fabricação de plástico (tais como BPA). Eles são perigosos, pois podem aumentar a ação ou até mesmo bloquear a produção de vários hormônios, causando graves problemas de saúde.
Os resultados têm implicações práticas promissoras. Esperamos que, ao compreender os mecanismos de ação de cada uma dessas subestruturas, possamos promover mudanças significativas no desenvolvimento de métodos alternativos para avaliar melhor os riscos e criar medicamentos mais eficientes e menos tóxicos.
Além disso, à medida que a Inteligência Artificial continua a desempenhar um papel mais importante na medicina, é importante garantir que essas metodologias sejam explicáveis e precisas, fatores essenciais para ganhar a confiança da comunidade médica e da população.
É importante ressaltar que os nossos estudos puderam ser desenvolvidos graças ao apoio de agências de fomento à pesquisa, como a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
André Silva Pimentel – Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e professor associado do Departamento de Química do Centro Técnico Científico, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)