(*) Antônio Reis
Há mais de mês chuvas, enchentes e prejuízos abalam a soberba dos gaúchos e expõem a insensibilidade do rapazinho que governa o Estado. É tragédia, sim. Anunciada, é bom que fique claro. Fatalidade, jamais. Todavia, como federalista e, acima de tudo, humanista, me engajei na corrente de solidariedade.
Só quem foi vítima de enchentes sabe o significado. Além da impotência, bate nas vítimas o sentimento de revolta por saber que a desgraça poderia ter sido evitada, mas aconteceu por omissão do poder público e descaso de quem não vive nas áreas de risco.
No fim de 1999 ou início de 2000, uma chuva intensa e de longa duração castigou Araçatuba, enchendo o Córrego Machado de Melo, que transbordou. As casas mais próximas, inclusive a minha, foram tomadas pela enchente. Ficamos com água pela cintura. Não digo que as águas invadiram as casas, porque as casas é que há muito haviam invadido o espaço do córrego por irresponsabilidade de quem construiu o residencial Monterrey.
O empreiteiro construiu o residencial bem antes de se eleger prefeito e se tornar conhecido em todo o País pelo escândalo financeiro que lesou milhares de consumidores. A minha enchente e a de meus vizinhos não teve mortes e não se compara ao que acontece com a população gaúcha, exceto nas irresponsabilidades e nas perdas de bens materiais irrecuperáveis.
Além da perda de móveis, eletroeletrônicos, eletrodomésticos e a feira do mês, as vítimas das enchentes têm perdas que jamais serão recuperadas. Este cronista, por exemplo, perdeu um raro exemplar de Metamorfose, do Kafka, formato revista em quadrinhos desenhada pelo ilustrador argentino Leo Durañona. A chuva e o barro também levaram para sempre Beijo na Boca, do marginalíssimo poeta Cacaso.
“Correios da Unesco”. Essas doem muito, quando me lembro da coleção que passei anos comprando mês a mês. Era uma revista de circulação nos cinco continentes e cada edição abordava um tema, como teatro de rua, músicas folclóricas, esculturas em terracota ou literatura árabe (apenas quatro exemplos comprovam o raro conteúdo). A revista saiu de circulação há anos e em vão tenho vasculhado sebos virtuais em busca de ao menos um exemplar.
Um número do Gramna, importado por uma amiga no tempo em que visitar Cuba era tabu, virou gelatina. Quinze volumes de Novo Conhecer, enciclopédia em fascículos semanais dos anos 1970, com imenso valor afetivo, foi por água abaixo. Cadernos do Terceiro Mundo (revista internacionalista da política), muitos livros e discos de vinil foram pras cucuias.
Não me alongo para evitar vitimismo e coitadismo, mas pelo pouco do descrito, creiam, deixaram sequelas para sempre. São joias que as seguradoras não oferecem proteção. Como toda vítima de enchentes, estou aberto à solidariedade. Se alguém se sensibilizar, humildemente aceito doações para repor minhas perdas.
Antônio Reis é jornalista em Araçatuba, fotógrafo diletante e ativista cultural.