Embora saibamos que uma em cada duas pessoas no mundo desenvolverá alguma forma de câncer durante a sua vida, ainda há muito que não sabemos sobre essa doença devastadora. Mas graças aos esforços contínuos de pesquisa, continuamos aprendendo mais sobre a biologia do câncer. Uma dessas descobertas recentes pode até transformar nossa compreensão de como os cânceres se desenvolvem, e contribuir muito para a eficiência dos tratamentos.
Mas antes de falarmos sobre a nova descoberta, vamos primeiro discutir a teoria clássica que tenta explicar por que as células normais se tornam células cancerosas. Essa teoria postula que as mutações no DNA são a principal causa dos cânceres.
Sabe-se que o envelhecimento, bem como alguns fatores ambientais e de estilo de vida (como o fumo e a radiação ultravioleta) causam mutações aleatórias no DNA (também conhecidas como alterações genéticas) em nossas células. A maioria das alterações genéticas provoca a morte da célula ou não tem nenhuma consequência. Entretanto, algumas mutações favorecem a sobrevivência das células. Se ocorrer um número suficiente de mutações de DNA “que prolongam a vida” em uma célula, essa célula se tornará praticamente imortal, iniciando uma série de duplicações descontroladas que geram um câncer. Essa teoria foi corroborada por extensas evidências experimentais.
No entanto, essa teoria dá muita importância às mutações do DNA, que são irreversíveis e, muitas vezes, difíceis de serem alvejadas com medicamentos. Portanto, se o câncer for causado apenas por mutações genéticas, nossa capacidade de matar as células cancerosas pode ser limitada.
É interessante notar que existem outras teorias sobre como o câncer começa. Se essas teorias também forem válidas, poderemos desenvolver melhores maneiras de prevenir e tratar os cânceres.
Uma dessas novas teorias foi testada por pesquisadores em uma recente publicação na Nature. Esse estudo foi realizado em moscas-das-frutas (que compartilham 75% dos genes associados a doenças humanas). Os pesquisadores usaram as moscas para investigar se os cânceres poderiam ser causados por alterações epigenéticas – “marcas” reversíveis que são adicionadas ao genoma para ativar e desativar os genes.
“Genética” e “epigenética” podem parecer semelhantes, mas denotam dois processos muito diferentes. Para entender a diferença entre as mutações genéticas e as alterações epigenéticas, pense em seu DNA como um livro que contém as informações necessárias para você ser quem você é.
De acordo com essa metáfora, cada gene seria o equivalente a uma frase nesse livro. Uma mutação genética corresponderia a uma caneta riscando ou modificando uma frase. Uma vez feita, não é possível desfazer essa mudança.
As marcas epigenéticas são mudanças mais sutis, como sublinhar uma frase com um lápis ou usar um marcador para recuperar rapidamente uma determinada página. Essas alterações são obtidas pela adição ou remoção de pequenas moléculas ao próprio DNA ou às proteínas que estão intimamente associadas ao DNA. Dessa forma, as alterações epigenéticas são reversíveis, mas podem ter um impacto profundo na maneira como as células “lêem” o DNA.
As marcas epigenéticas são essenciais para ativar e desativar os genes durante o desenvolvimento uterino (por exemplo, para nos ajudar a formar nossos olhos). As marcas epigenéticas também criam uma ponte entre o ambiente externo e os genes. Por exemplo, a regulação epigenética dos genes permite que os animais se adaptem às mudanças de estação.
Durante muito tempo, as marcas epigenéticas foram consideradas fugazes demais para realmente causar câncer. Mas trabalhos anteriores do nosso grupo de pesquisa e de muitos outros mostraram que as células cancerosas acumulam várias alterações epigenéticas – e essas alterações podem promover a sobrevivência das células cancerosas de forma tão eficaz quanto as mutações no DNA. Isso sugere que o câncer se desenvolve por meio do acúmulo de alterações genéticas e epigenéticas.
Entretanto, estudos anteriores nessa área não tinham evidências suficientes para demonstrar que as alterações epigenéticas poderiam causar câncer na ausência de mutações no DNA. Esse estudo recente na Nature demonstrou pela primeira vez que uma alteração temporária nas marcas epigenéticas, mesmo sem uma mutação no DNA, é suficiente para causar câncer.
Tratamento do câncer
Esse não é apenas um resultado cientificamente fascinante, mas uma evidência que pode mudar a forma como tratamos alguns tipos de câncer, especialmente se esses resultados forem confirmados em estudos futuros.
Se as alterações epigenéticas contribuírem para o câncer, os pesquisadores poderão desenvolver terapias epigenéticas para essa doença mortal. Muitos cientistas e empresas farmacêuticas têm trabalhado nisso nas últimas décadas.
Essas terapias reprogramariam as células cancerosas alterando a distribuição de marcas epigenéticas reversíveis. Isso permitiria que as células voltassem ao seu comportamento normal, interrompendo assim a reprodução descontrolada.
Alguns desses novos medicamentos epigenéticos já foram aprovados em alguns países para o tratamento de cânceres de sangue e sarcomas. Outros medicamentos epigenéticos estão em testes clínicos para os tipos de câncer mais comuns, inclusive câncer de mama e de próstata.
A teoria epigenética do câncer também tem implicações para a detecção do câncer. Traços de marcas epigenéticas anormais são liberados pelas células cancerosas e podem ser encontrados no sangue de pacientes com câncer. É por isso que meus colegas e eu descrevemos um exame de sangue que pode detectar marcas epigenéticas em pequenas quantidades de sangue. Como as mutações no DNA também podem ser encontradas no sangue de pacientes com câncer, a combinação de testes genéticos e epigenéticos poderia tornar a detecção do câncer ainda mais precisa.
As terapias epigenéticas também podem ser combinadas com as terapias tradicionais contra o câncer, como a cirurgia ou a radioterapia, que são muito eficazes em muitos casos.
Nossa equipe também propôs que medicamentos e testes epigenéticos poderiam ser usados para desenvolver tratamentos melhores e mais precisos, otimizados para cada paciente, embora essa tecnologia ainda esteja muito distante.
Embora a teoria epigenética do câncer explique aspectos importantes de como a doença progride, isso não significa que a teoria clássica do câncer esteja errada. Essa nova teoria enriquece nossa compreensão de um fenômeno complexo, lembrando-nos de que ainda há muito a aprender sobre o câncer.
As próximas etapas dessa pesquisa consistem em testar a teoria epigenética em outros modelos, como células humanas, para promover o desenvolvimento de tratamentos de precisão.
Francesco Crea, Professor (Cancer Pharmacology), The Open University
This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.