Entre 2011 e 2020, o Brasil registrou 24.909 casos de acidentes de trabalho e 466 mortes de menores de 18 anos em situações ligadas ao trabalho. Isso significa uma média de 3,9 crianças e adolescentes mortos por mês enquanto trabalhavam. E 207 acidentados — muitos, com consequências que vão durar a vida toda, como amputações de membros.
Os números são do levantamento realizado por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) publicado nesta sexta-feira (13/10) na Revista Brasileira de Saúde Ocupacional. Para o estudo, foram utilizados dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), considerando informações sobre trabalhadores de 5 a 17 anos.
Do total de acidentes de trabalho reportados no período, 792 vitimaram menores de 14 anos — que, segundo a legislação brasileira, não poderiam trabalhar de forma alguma. No Brasil, menores de idade podem trabalhar a partir de 14 anos apenas como aprendizes e entre 16 e 18 anos de forma protegida, longe de quaisquer atividades que possam representar perigo.
Para a médica Élida Azevedo Hennington, uma das autoras da pesquisa, é preciso lembrar que certamente há subnotificação para tais casos. “Como podemos aceitar tantas crianças e adolescentes trabalhando, vítimas de acidentes, e, o que é pior, morrendo por acidentes de trabalho?”, indigna-se ela.
Segundo os dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 1,8 milhão de crianças e adolescentes brasileiros estavam em situação de trabalho infantil em 2019.
“Nossas crianças e adolescentes precisam ser cuidados. Eles são o nosso futuro e a nossa esperança de dias melhores, de uma sociedade mais justa. Não é aceitável que nossos filhos possam frequentar a escola, brincar e se divertir, e desenvolver todo o seu potencial, enquanto outras crianças, principalmente negras e pobres, não têm direitos nem oportunidades e vivem nos grotões ou nas periferias das grandes cidades, moram em habitações precárias, são obrigadas a trabalhar desde cedo porque passam fome e outras necessidades, correm riscos nas ruas, sofrem violências”, diz a médica. “Precisamos nos indignar a respeito.”
Casos subnotificados
Especialistas ouvidos pela DW concordam que os casos são subnotificados, acreditam que os dados da PNAD estão defasados e dizem que são necessárias mais campanhas de conscientização e até mesmo uma nova legislação para coibir o trabalho infantil. Além disso, eles não acreditam que o Brasil conseguirá cumprir o compromisso internacional firmado com a ONU de erradicar todas as formas de trabalho infantil até 2025.
“A criança e o adolescente são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e, por isso, ainda não estão totalmente preparados para desenvolver trabalho”, argumenta a jornalista Bruna Ribeiro, autora do livro-reportagem Meninos Malabares: Retratos do Trabalho Infantil no Brasil, e ex-gestora do projeto Criança Livre de Trabalho Infantil.
“Não me surpreendem os dados. Pois vivemos ouvindo que é melhor trabalhar do que roubar, que trabalhar não mata ninguém. Mas essa pesquisa mostra que infelizmente são muitos acidentes gravíssimos envolvendo menores de idade em situação de trabalho”, afirma o desembargador do Trabalho João Batista Martins César, presidente do Comitê de Erradicação do Trabalho Infantil de seu tribunal e integrante da Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Infantil. “E os dados mostram que com a pandemia o número de crianças e adolescentes trabalhando no Brasil aumentou muito dos 1,8 milhão [da última PNAD]. Tem estudos que indicam que esse número pode ter sido multiplicado por sete.”
Ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o advogado Ariel de Castro Alves diz que “esse número alto de acidentes” envolvendo menores de idade em situação de trabalho infantil “serve como argumento contra aqueles que legitimam tais casos”.
“Esses acidentes ocorrem porque há a certeza da impunidade”, comenta ele. “Impunidade daqueles que empregam esses adolescentes em condições clandestinas, sem garantir qualquer tipo de proteção, de dignidade.”
Violência que precisa ser tipificada
Embora seja proibido, o trabalho infantil não é considerado crime no Brasil. Autora do livro Crianças Invisíveis: Trabalho Infantil nas Ruas e Racismo no Brasil, a procuradora do trabalho Elisiane Santos explica: quando não está associado a uma “conduta ilícita na esfera penal”, a situação de trabalho infantil denunciada acaba fazendo com que quem a explora seja obrigado a responder na esfera civil e trabalhista, além de obrigado “a cessar imediatamente a conduta” e “pagar os direitos devidos”.
Alves lembra que, na maior parte dos casos, é possível enquadrar o empregador pelo crime de maus tratos, previsto no código penal. “Seria uma forma de punição”, salienta. “Mas é uma lacuna a falta de tipificação do crime de exploração do trabalho infantil. Precisamos avançar na legislação.”
Santos ressalta que trabalho infantil “é uma violência que não pode ser vista com olhar de admiração, condescendência nem tolerância” e que o “olhar de proteção” não pode “se resumir às infâncias privilegiadas” do país.
Em comum, todos os especialistas citam a necessidade de mais campanhas de conscientização, não só esclarecendo para crianças e seus familiares seus direitos como também mostrando aos empregadores que é errado contratar menores nessas condições.
“Precisamos de campanhas informativas para demonstrar, para quem emprega irregularmente, os danos causados pelas atitudes deles, pela exploração do trabalho infantil”, destaca Alves. (DEUTSCHE WELLE/ ISTO É)