Ananda Rosa*
Ontem, 18 de setembro, fomos alcançados pela notícia de que a fachada principal do antigo prédio das Oficinas de Locomotivas da NOB (Estrada de Ferro Noroeste do Brasil) desabou. O leitor há de concordar que não posso utilizar-me da expressão “fomos surpreendidos” para ditar o acontecido. Não o fomos, haja vista que a edificação, tombada pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo), vem sendo negligenciada pelo poder público araçatubense, tais como outras pertencentes ao Complexo Ferroviário, apesar de constantes lamentações e mobilizações por aqueles da sociedade civil interessados no valor histórico do bem e preocupados com a memória da cidade.
Também não surpreendentemente, relembro a passagem da quarta-feira, dia 12 de janeiro de 2022, quando parte da estrutura do telhado das antigas oficinas colapsou. No entanto, caro leitor, indigne-se: a edificação, abandonada desde 2009, teve obras de “restauro” iniciadas apenas em 2023.
Agora, com telhado e fachada principal destruídos, de que adiantam mobilizações? Não há reconstrução que recupere o valor histórico do prédio que veio ao chão.
Há anos a Prefeitura Municipal de Araçatuba assiste à paulatina degradação de seus bens patrimoniais. Deveras, equivoquei-me ao utilizar o verbo “assistir”. Assistir demanda pouca ação. A Prefeitura é sujeito ativo de tal processo.
Tenho para mim, meu caro, que nessa passiva/ativa conjuntura, o poder público araçatubense assemelha-se à figura de Rubião, um personagem de Machado de Assis do livro Quincas Borba, que adentra nosso artigo sobre os sucessivos e trágicos casos de destruição de bens culturais.
Quincas Borba é útil para nossa narrativa na medida em que foi o criador da Filosofia do Humanitas. Segundo o Humanitismo de Quincas, a vida é um campo de batalhas onde só pode haver um vencedor: supomos a existência de duas tribos famintas e um campo de batatas suficiente para alimentar apenas uma das tribos. A tribo alimentada consegue forças para transpor a montanha e chegar à outra vertente onde há batatas em abundância, perpetuando, assim, sua existência. No entanto, se as duas tribos não guerrearem e dividirem em paz as batatas do campo, não se nutrem e morrem de inanição. “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
Satirizando as relações sociais de uma sociedade dissimulada, Machado de Assis, ao criar essa filosofia fictícia, através de um de seus personagens, critica a “lei do mais forte, do mais rico e do mais esperto” e questiona os preceitos éticos, programas e políticas que pautavam a produção do seu tempo, não distante moralmente do nosso.
Rubião, personagem que para nós representa a Prefeitura Municipal de Araçatuba, é fiel seguidor da Filosofia de Quincas e é quem, na trama machadiana, recebe de Quincas Borba uma grande herança e, por tal motivo, se muda de Barbacena, no interior de Minas, para o Rio de Janeiro. Aos poucos, a vida na cidade vai se revelando um grande jogo de aparências e Rubião, abraçado no Humanitismo, vai sendo levado à degradação: perde o dinheiro, a identidade, a sanidade. Ao fim, Rubião morre pobre acreditando-se ser o Imperador da França.
Nesse contexto, o “baile de máscaras” é ostentado por Machado em favor da dissimulação das reais intenções de cada um. O livro Quincas Borba representa, portanto, a reafirmação em Rubião da amoralidade dos princípios humanitistas: o fingimento das relações sociais e o desnude irônico e sutil do caráter desumano. É a seleção dos mais capacitados, o princípio único de tudo. Aos fracos e/ou ingênuos cabe a manipulação e o aniquilamento.
A Prefeitura Municipal, após o desabamento do telhado e da fachada principal do que ela própria chama de “Centro Cultural Ferroviário”, ao ser sujeito ativo frente à deterioração do bem, coloca-se à mesmice. Assim como Rubião, que abraça a filosofia da conformidade – que tudo é explicado através da natureza humana – o poder público araçatubense cai na narrativa irônica, sarcástica, sádica e pessimista de Machado de Assis e comemora aquilo que lhe é momentaneamente aprazível, pensando ter levado as batatas. Não se dá conta, entretanto, de que a sobrevivência do mais apto, segundo a filosofia, não traz glória a nenhuma das tribos. Em Araçatuba morreremos todos de inanição ou acreditando sermos Napoleão.
Mobilizemo-nos, caro leitor, antes que todos os edifícios históricos da nossa cidade venham abaixo e antes que meu próximo artigo comece como outro livro machadiano, desta vez Memórias Póstumas de Brás Cubas:
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas” (Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas).
Esse mesmo, fino leitor, aquele dedicado ao verme que devorou os restos terrenos do defunto-autor. Aqui, no caso, será o obituário do Patrimônio Cultural de Araçatuba e os vermes serão outros…
Ananda Soares Rosa, docente, Arquiteta e Urbanista e Mestra em Arquitetura e Urbanismo.