A Câmara Municipal de Araçatuba não poderá mais ler a Bíblia durante as suas sessões, conforme previa o Regimento Interno da Casa. O Legislativo também não poderá mais utilizar os dizeres: “Sob a proteção de Deus, iniciamos os nossos trabalhos”. A decisão é do Tribunal de Justiça de São Paulo, que julgou procedente Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo.
A Câmara está em recesso parlamentar e retoma as reuniões ordinárias no dia 7 de agosto. A decisão unânime e já transitada em julgado foi proferida em maio deste ano. A Câmara de Araçatuba foi comunicada do acórdão neste mês. O julgamento tem efeito ex-tunc (ou seja, a inconstitucionalidade existe desde o início da prática). Não cabe mais recurso.
Os desembargadores do TJ-SP entenderam que o Legislativo, por se tratar de Estado Laico, não pode manifestar filiação a determinada religião em detrimento das inúmeras outras existentes, sob pena de tolher de seus cidadãos o direito e a liberdade de escolher a orientação religiosa que melhor lhes aprouver ou mesmo de optar por se abster de professar qualquer tipo de crença. Por isso, consideraram inconstitucional o uso pela Câmara da frase “sob a proteção de Deus” e a leitura bíblica durante a abertura das sessões legistativas.
Conforme a decisão, ao determinar a abertura das sessões com a expressão “sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos” e posterior leitura de um texto da Bíblia, a Câmara viola o princípio da laicidade, decorrente da liberdade religiosa,e fere os artigos 5°, inciso VI, e 19, inciso I, da Constituição Federal, segundo a decisão do TJ-SP.
O artigo 5º prevê que todos são iguais perante a lei e é inviolável a liberdade de consciência e de crença. Já o artigo 19 veda à União, Estados e municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Além disso, conforme a decisão do TJ-SP, o privilégio para determinada religião (cristã) em detrimento das demais que não se pautam nos ensinamentos bíblicos bem como daqueles que manifestam ausência de crença, ofende também o princípio da isonomia previsto no artigo 111 da Constituição Paulista.
A ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada pela PGJ a partir de uma representação feita pelo jornalista e escritor Eduardo Banks dos Santos Pinheiro, do Rio de Janeiro, que milita pela causa do Estado Laico.
O julgamento da ação teve a participação dos desembargadores Ricardo Anafe (Presidente), Fábio Gouvêa, Matheus Fontes, Aroldo Viotti, Costabile e Solimene, Luciana Bresciani, Elcio Trujillo, Luis Fernando Nishi, Décio Notarangeli, Jarbas Gomes, Márcia Dalla Déa Barone, Tasso Duarte de Melo, Silvia Rocha, Camilo Léllis, Guilherme G. Strenger, Xavier de Aquino, Damião Cogan, Ferreira Rodrigues, Evaristo dos Santos, Vico Manas, Francisco Casconi, Ademir Benedito e Campos Mello.
A mesma decisão já foi proferida contra as Câmaras Municipais de Piracicaba, Araras, Itapecerica da Serra e Catanduva, citadas no voto do relator, desembargador Tarcisio Ferreira Vianna Cotrim.
A presidente da Câmara de Araçatuba, Cristina Munhoz, disse que não iria recorrer da decisão, ainda que fosse possível. “Imagine se eu tiver que ler todos os textos de outras religiões”, afirmou.
Tema gerou manifesto e protesto na Câmara
A leitura da Bíblia durante as sessões da Câmara de Araçatuba rendeu muita polêmia em 2021, após o PSOL publicar um manifesto e coletar assinaturas pedindo o fim da prática religiosa no Legislativo, em defesa do Estado Laico.
Na sequência, o vereador Maurício Bem Estar (PP), que é evangélico, apresentou um requerimento que repudiava a iniciativa do PSOL, o que acabou provocando uma manifestação com representantes de várias vertentes religiosas, na sessão ordinária de 4 de outubro de 2021, enquanto o vereador lia o documento.
O protesto, organizado pelo presidente do Diretório Municipal do PSOL, professor Mateus Lemes, levou à Câmara dez representantes da religiões anglicana, umbanda, evangélica, espírita, candomblé e católica. Eles portavam cartazes e proferiram frases em defesa do Estado Laico.
Por causa das manifestações, que foram classificadas como “abusivas” pelo então presidente da Casa, vereador Dr. Alceu (PSDB), a sessão foi suspensa por duas vezes e os manifestantes foram retirados do local.
O requerimento de Maurício Bem Estar acabou sendo aprovado por 12 votos. O único contrário foi o vereador Wesley da Dialogue (Podemos).
A Resolução nº 2.015, de 25 de novembro de 2019, que alterou o Regimento Interno da Câmara Municipal de Araçatuba, previa a leitura de um texto bíblico por até três minutos, além da fixação da seguinte menção a ser proferida pelo presidente da casa: “Sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos” ao início das sessões ordinárias e extraordinárias.