Nesta terça-feira (4), o Grupo de Trabalho (GT) que deve propor uma regulamentação para o trabalho em aplicativos no país retoma suas reuniões, depois de debates acalorados com quase nenhum consenso no último mês.
O retorno acontece dias depois de greves de entregadores e de motoristas de app em diferentes partes do Brasil.
Conduzido pelo governo federal, o GT foi instituído por decreto presidencial e reúne representantes das empresas de app e de trabalhadores – estes últimos em sua maioria representados por centrais sindicais (escolha questionada por muitos entregadores ouvidos pelo Brasil de Fato).
Os encontros, coordenados por Gilberto Carvalho, secretário de Economia Popular e Solidária do Ministério do Trabalho, foram divididos em dois subgrupos: dos entregadores e dos motoristas. Apesar de nada ter sido definido ainda, um documento com nove itens apresentado pelas empresas de apps é revelador do que os empregadores tentarão aprovar.
Representando iFood, Uber, 99, Lalamove, Buser, Zé Delivery, Amazon e Flixbus, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Abomitec) destacou a “segurança jurídica” como o primeiro ponto de sua carta ao GT.
“É fundamental a aprovação de uma legislação nova”, diz o documento, “que afaste – definitivamente – as supostas controvérsias em torno da existência de vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas”.
Trabalho “intermediado” por plataformas?
Para o jurista Jorge Luiz Souto Maior, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho e professor de Direito do Trabalho da USP, o documento da Abomitec tem “grande utilidade”. Porque permite “aos trabalhadores visualizarem bem o quanto as empresas proprietárias de aplicativos têm a compreensão de que se integram a uma autêntica relação de trabalho com aqueles que realizam o seu negócio, embora tentem negar haver esta relação”.
Em sua declaração, o diretor-executivo da Abomitec, André Porto, usou uma palavra que permeia todo o documento. “Com a sugestão de agenda apresentada, buscaremos melhorar as condições de trabalho mediado por plataformas digitais”, descreveu o representante das empresas. A palavra crucial da frase acima é “mediado”, indicando falta de vínculo.
Para Souto Maior, a frase “trabalho intermediado por plataformas” repetida à exaustão é um eufemismo. “Sabem que se trata, na verdade, de uma exploração do trabalho alheio, tanto que seu negócio, efetivamente, é o da venda dos serviços executados pelos trabalhadores para os usuários dos aplicativos”, aponta.
“Não são simplesmente empresas de tecnologia, vamos deixar isso bem claro”, assegura o entregador JR Freitas. Em nome da Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativo (ANEA), ele vem participando das reuniões em Brasília.
Autonomia, flexibilidade e independência
Ao dizer que os trabalhadores devem poder escolher o dia e horário que se conectam às plataformas, a proposta das gigantes do delivery e do transporte individual afirma, assim, estar defendendo que seja assegurada “a autonomia e independência do trabalhador”.
Na percepção de Jr, “quando se trabalha em entrega para aplicativos, não existe autonomia. Existe flexibilidade”: “Se fôssemos autônomos, a gente podia escolher por quanto queremos fazer a corrida, saberíamos quem é o cliente, poderíamos recusar sem sofrer penalidade”, exemplifica.
“Se eles querem trabalhadores 100% autônomos, vão ter que dar autonomia para o trabalhador. Caso contrário, não vai ter para onde correr se não o vínculo empregatício”, opina Freitas.
“A Abomitec insiste na retórica de chamar os trabalhadores de ‘independentes’, mas o que se tem, concretamente, é uma efetiva relação de interdependência, pois os trabalhadores não realizariam os serviços sem os aplicativos e a gestão realizada pelas empresas”, avalia Souto Maior. “E estas, as empresas de plataformas, não existiriam sem os trabalhadores, sendo, portanto, completamente dependentes dos serviços que estes executam”.
“Se a autonomia dos trabalhadores existisse de fato, uma proposta partindo das empresas não teria o menor sentido, pois seria como se estivessem interferindo na liberdade alheia e no poder de autogestão daquele que é dono do seu próprio negócio”, constata o jurista.
“Ao clamar por segurança jurídica, as empresas reconhecem que não estão diante de uma hipótese de trabalho autônomo”, afirma Souto Maior. “O que querem, pois – e isto o documento deixa bem nítido – é uma ‘segurança jurídica’ para continuarem explorando o trabalho alheio sem assumir as responsabilidades jurídicas decorrentes dessa exploração”, avalia.
Além disso, completa o desembargador do Tribunal Regional do Trabalho, flexibilidade de horários “nunca foi obstáculo ao reconhecimento de direitos aos trabalhadores”.
Os próximos pontos de debate em Brasília
A última reunião entre entregadores, empresas e Ministério do Trabalho em Brasília aconteceu em 21 de junho e, depois de duas horas de debates tensos, teve como único consenso os assuntos prioritários a serem discutidos no encontro da próxima quarta (5). Serão remuneração mínima e segurança/saúde do trabalhador.
Ambos os pontos estão no documento das empresas. No primeiro deles, elas defendem “que os trabalhadores recebam o equivalente ao salário mínimo nacional proporcional ao tempo efetivamente e comprovadamente trabalhado”.
Para Souto Maior, o documento “preconiza que os trabalhadores por aplicativos devem ter um salário mínimo, como se o direito fundamental ao salário mínimo, previsto na Constituição Federal e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dependesse de um favor do empregador”.
“Mas mesmo neste aspecto, agem de forma enganosa”, avalia o professor da USP, “já que a preocupação, novamente, é com a ‘segurança jurídica’ de pagarem aos trabalhadores um valor inferior ao salário mínimo”.
Este, que atualmente no Brasil está em R$1.320, como lembra o jurista, é um cálculo do que seria o mínimo necessário à sobrevivência. “O salário mínimo deve ser garantido independentemente do número de horas trabalhadas, até para que a tática de punição dos trabalhadores pelo não oferecimento de chamadas seja interrompida ou, ao menos, minimizada”, expõe Souto Maior.
Já no que diz respeito à segurança e saúde do trabalhador, empresas como o iFood, a Uber, a 99 e o Lalamove dedicam uma sucinta frase na proposta apresentada. “Garantir a contratação de seguro contra acidentes que complementem a proteção oferecida pelo sistema público de seguridade social brasileiro”.
Não há qualquer menção sobre as condições de trabalho, períodos de descanso, o uso de capacetes, botas ou outros Equipamentos de Proteção Individual (EPIs).
Assumindo que muitos trabalhadores poderão adoecer, sofrer acidentes ou mesmo morrer, as empresas defendem que eles sejam incluídos no sistema público de previdência. E que tenham acesso à cobertura em casos de “doença, acidentes e outras adversidades, além da aposentadoria por idade”. Este valor seria recolhido em parte pelas empresas e em parte pelos trabalhadores – que teriam a contribuição retida pelas plataformas.
“O que se vislumbra não é propriamente uma preocupação com a segurança e a saúde, do ponto de vista da prevenção, e sim mais uma forma de reparação”, avalia Souto Maior.
“Para ficar ruim, a carta da Abomitec tem que melhorar muito”, opina JR Freitas. “Empresas que ficam bilionárias em cima do trabalhador, a gente não tinha que estar discutindo tanto para conseguir direitos básicos”, expõe o entregador: “Mas vai ser uma luta”.