O Tribunal da Justiça de São Paulo atendeu a pedido realizado pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) e concedeu, nesta segunda-feira (3), liminar suspendendo os efeitos da lei que instituiu o ensino cívico-militar no município de Santa Fé do Sul, localizado no oeste paulista. A Câmara Municipal e o prefeito da cidade, Evandro Farias Mura (União Brasil), têm 30 dias para se manifestar nos autos.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade, o sindicato pediu que a lei nº 4.342 de 28 setembro de 2022 do município fosse declarada inconstitucional por “usurpação da competência da União para legislar sobre educação”. Na liminar, o relator, Xavier de Aquino, afirmou que a lei “parece desatender à Lei de Diretrizes Básicas da Educação e ao artigo 206 da Constituição Federal”. O artigo 206 trata da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”.
A escola, que passou a funcionar no novo modelo em fevereiro de 2023, recebeu na última sexta-feira (24) uma visita do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Em vídeos publicados nas redes sociais da prefeitura da cidade e do próprio parlamentar, é possível acompanhar a revista aos alunos, os cumprimentos e a explicação da rotina das crianças e adolescentes, que têm idades entre 10 e 14 anos.
Histórico
Localizada a poucos quilômetros do Mato Grosso do Sul, Santa Fé do Sul tem cerca de 33 mil habitantes. Os índices educacionais da cidade são melhores que os da média do estado de São Paulo. A nota do município nos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º anos) no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) em 2022 era de 5,9. Isso coloca a cidade no 23º lugar entre os 654 municípios do estado e no 135º lugar entre as 5.570 cidades de país.
Mesmo com bons índices educacionais, a prefeitura tomou a decisão de instalar o ensino cívico-militar em uma das unidades escolares do município, a Escola Municipal Thereza Siqueira Mendes. A iniciativa não faz parte do Programa de Escolas Cívico-Militares (Pecim), instituído no Ministério da Educação durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). A cidade de Santa Fé do Sul não se qualifica nas regras para a adesão ao Pecim. Para participar, a unidade escolar precisa estar “em situação de vulnerabilidade” e com “baixo desempenho no Ideb”, além de estar localizada em capitais ou regiões metropolitanas.
Contratação
Para instalar esse modelo escolar, portanto, a prefeitura precisou criar um caminho diferente. A escolha foi a contratação de uma organização social que implantasse e gerisse o sistema.
Apesar de não ser um modelo aplicado em grande escala no país, houve uma organização interessada. Em chamamento público publicado no site da prefeitura no dia 2 de janeiro de 2023, a prefeitura buscava “Organização da Sociedade Civil (OSC), para a implementação do Programa Cívico – Militar” na Escola Municipal Professora Thereza Siqueira Mendes”.
No edital, a prefeitura determinou que a organização escolhida seria remunerada com até R$ 719,4 mil no ano de 2023. Entre os objetivos explanados no documento estão “oferecer aos alunos educação formal baseada em valores cívicos, patrióticos, éticos e morais”, “usar como meios educacionais o ensino do civismo, o respeito às leis, os direitos e deveres do cidadão e os ideais da família” e “melhorar os indicadores de desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)”.
No dia 7 de fevereiro – segundo dia útil depois da publicação do edital no D.O. da cidade – o prefeito Evandro Farias Mura assinou a homologação da escolha da Associação de Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar – Defenda PM. Fundada em 2016, a organização se define como uma entidade de classe sem fins econômicos, apartidária, laica e de caráter civil.
Um pessoa que mora no município e que tem proximidade com a comunidade escolar da escola Thereza Siqueira Mendes, sob condição de anonimato, afirmou ao Brasil de Fato que a equipe que faria a gestão da escola no modelo cívico-militar foi apresentada em novembro de 2022. Os profissionais e seus cargos já estariam escolhidos muito antes da publicação do contrato no Diário Oficial.
Processo legislativo
Durante o ano de 2022, houve uma série de atos normativos para a instalação do ensino cívico-militar na cidade. O primeiro documento relacionado à mudança de sistema de ensino na Thereza Mendes data de 23 de agosto de 2022. É a ata de uma reunião do Conselho Escolar da unidade. Nela, consta a aprovação pelos participantes da alteração do regimento escolar para que a unidade implantasse o modelo cívico-militar.
Esse passo é preponderante para que o modelo seja mudado. O Conselho Escolar tem caráter deliberativo e precisa aprovar mudanças no regimento escolar. O encontro, no entanto, pode não ter acontecido. Uma denúncia anônima dá conta de que a direção da escola recolheu assinaturas no documento em data posterior à suposta reunião, sem que os signatários soubessem do teor da da ata.
A página assinada pelos integrantes do conselho, aliás, não traz nenhum detalhe sobre a mudança do regimento. A expressão cívico-militar aparece somente uma vez, no meio do texto corrido. Não constam sequer explicações sobre o novo regimento ou eventuais dúvidas que os participantes possam ter levantado durante a explanação no modelo.
Após a suposta aprovação da mudança regimental no Conselho Escolar, os vereadores aprovaram a lei 4.342/22, que aprova a inclusão da “Gestão Cívico Militar no Sistema Municipal de Ensino”. Isso significa que a alteração regimental na escola Thereza Mendes aconteceu antes mesmo da aprovação da lei que permitia que esse tipo de ensino fosse aplicado no município.
A tramitação do projeto de lei foi célere. Foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Redação e na Comissão de Orçamento, Finanças e Contabilidade no dia 27 de setembro de 2022. No mesmo dia, foi aprovada em votação simbólica, por maioria simples, no plenário da casa.
Após a aprovação da gestão cívico-militar na rede municipal, veio, em 26 de outubro, mais um ato normativo: o decreto 5.291/22, que institui o programa na escola Thereza Mendes.
Choque com a legislação sobre financiamento da educação
Apesar da existência de um plano nacional para a implantação de escolas cívico-militares, há especialistas na área da educação que afirmam que o financiamento desse tipo de modelo escolar não pode ser custeado com recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). O fundo é responsável por cerca de 60% do custeio da educação básica no país.
A lei nº 11.494, que regulamentou o Fundeb em 2020, dá conta de que os recursos do fundo só podem ser usados para remunerar profissionais da educação. Já a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei 9.304/96) determina que “consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos.” Isso não inclui, portanto, remuneração a profissionais da segurança pública.
Para Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e integrante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, não deveria haver dúvidas sobre o tema. “A lei deixa escancarado quem pode atuar na escola, na sala de aula, na gestão. E aí você começa a contratar essas pessoas para atuar na educação?”, questiona.
O tema já foi apreciado pela Justiça de São Paulo, em outra Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta também pela Apeoesp. Por unanimidade, os 25 integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça (TJ-SP) decidiram, em outubro de 2022, que o programa de escolas cívico-militares no estado era inconstitucional.
A lei estadual nº 17.359/21, que criava o modelo de Escola Cívico-Militar (ECIM) na rede pública estadual apresentava vícios de origem. O TJ considerou que a implantação de um modelo de ensino deve ser realizada pelo executivo. Mas, além disso, considerou também que a lei “afrontou o princípio da valorização dos profissionais da educação e usurpou suas funções exclusivas infringindo o artigo 251 da Constituição Estadual; e, por fim, ampliou as funções das forças militares estaduais, afrontando o disposto no artigo 141 da Constituição Estadual”.
Esse precedente, que usou como argumentação a afronta ao ofício dos profissionais da educação e a ampliação ilegal das funções das forças de segurança, pode ser considerado um precedente para a derrubada de outros modelos de educação cívico-militar já instalados no Brasil. Há, por exemplo, outra ADI em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF), que questiona o modelo de escolas cívico militares do Paraná.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Prefeitura de Santa Fé do Sul e com a Defenda PM, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto para manifestações.
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