Chamar o feijão de tradicional no Brasil é pouco para explicar a importância histórica que a leguminosa tem para o país. Desde o fim do século 19, o grão forma a dieta básica das famílias brasileiras. Junto com o arroz, ele tem o balanço nutricional perfeito e se tornou obrigatório na mesa.
Mas isso está mudando. Cada vez mais o feijão vem perdendo espaço para alimentos industrializados e ultraprocessados. Embora ainda seja parte do cardápio de cerca de 60% da população, o consumo regular do feijão – cinco ou mais dias na semana – está caindo. Uma pesquisa da UFMG revela que a leguminosa pode deixar de ser frequente nos pratos da maioria da população – quatro ou menos dias por semana – até 2025.
De acordo com a publicação Arroz e feijão – tradição e segurança alimentar, da Embrapa, o feijão já era consumido no território em que hoje é o Brasil pelos povos originários que habitavam a região, cozido em panelas de barro e servido sem tempero.
Por muitos séculos, o grão não foi muito popular para o paladar europeu dos colonizadores. Mas ainda assim, já era comercializado em feiras de escambo, apenas poucas décadas depois da invasão portuguesa, na recém criada cidade de Salvador, capital baiana. A leguminosa era oferecida seca ou em vagem por famílias indígenas, as grandes provedoras de alimentos da época.
Ainda de acordo com a pesquisa da Embrapa, o convívio entre as culinárias dos povos que formaram o Brasil trouxe o caldo, os temperos, as pimentas e as carnes. A formação das diversas regiões garantiu a diversidade nas formas de preparo.
“Você tem pratos que eram muito típicos de populações europeias, que vieram com as tradições de imigrantes, e que aqui se adaptam aos ingredientes da terra. Variações regionais a partir de uma grande ideia, feita por muitos povos, não só europeus, mas também da África, de um cozido de uma leguminosa, acrescido de várias coisas (…) No fogão a lenha, ele ficava cozinhando muitas horas. Requeria uma técnica e uma dominação do fogo muito especiais, importantes e que mantinham, de alguma maneira, a comida viva” conta a historiadora Joana Monteleone, que pesquisa e leciona sobre as tradições alimentares brasileiras.
A partir dos século 19, o consumo passou a ser mais frequente no Brasil, mas a produção ainda era feita em hortas domésticas ou em sítios. A lavoura brasileira de feijão era produzida por mulheres nas pequenas produções familiares. Foi aí que ele passou a ganhar mais versões de preparo, formas, temperos e complementos.
Misturado com a farinha de mandioca, outro alimento básico da dieta brasileira, o feijão foi, gradativamente, entrado na alimentação cotidiana. Com caldo e carnes, por influências africanas e europeias, seco, com proteína animal defumada e farinha, para se adaptar aos viajantes, de cores diversas, como o preto da feijoada carioca e o branco da versão baiana do prato.
Na região de Minas Gerais, já com atividade mineratória em curso, ele aparecia no prato com couve, toucinho e farinha de mandioca ou milho. Variações do tropeiro são vistas hoje em diversos locais do Brasil. Nas estradas percorridas por bandeirantes no estado de São Paulo, era possível observar roças de feijão nos pontos de descanso mais frequentes. O plantio na ida, garantia o alimento pronto para consumo na volta.
Esse caminho levou a leguminosa a se fixar como alimento essencial da dieta brasileira ao longo do século 19. Segundo a publicação da Embrapa, há diversos relatos e crônicas dos períodos colonial e imperial que tratam o grão como básico no cotidiano.
Joana Monteleone afirma que, “a partir daí, vemos o feijão em muitos lugares. É quando os restaurantes também se tornam lugares de alimentação importantes. Eles anunciam os cardápios nos jornais e vemos coisas muito interessantes. Anúncios de feijoada no Rio de Janeiro, em dias em que (até hoje) achamos que é dia de feijoada mesmo no Rio. Essa ideia que o feijão estava disseminado pelo gosto da população mesmo.”
A historiadora explica que essa preferência se consolidou com o tempo. Talvez o incremento mais significativo no protagonismo do feijão tenha começado há cerca de 100 anos, entre as décadas de 1920 e 1950, quando movimentos populares, políticos e artísticos abraçavam cada vez uma ideologia de busca de uma identidade brasileira.
“Ser brasileiro é comer feijão. Houve um momento da história do país em que se acordou que o feijão e a feijoada eram a cara desse país e que nós, brasileiros, nos víamos como comedores de arroz e feijão. Esse é o momento de estabelecimento desses símbolos da nacionalidade.”
A presença no prato levou ao crescimento das lavouras. A partir do fim do século 19 o feijão era produzido em todas as regiões do Brasil. O cultivo junto com outras culturas, especialmente o quimicamente perfeito com abóbora e milho, foi predominante por muito tempo e até hoje é praticado. Mas em algumas regiões, especialmente em médias e grandes propriedades, ele é plantado sozinho.
Junto com o arroz, a leguminosa viria a se tornar um hábito na mesa das famílias brasileiras, que permanece até hoje. A importância nutricional e cultural da dupla fez com que o poder público definisse a combinação como essencial para a segurança alimentar. É um mecanismo que abre possibilidade de ações para incentivar a produção, controlar os preços e garantir o acesso.