- Inquérito na Corregedoria da Polícia Civil de São Paulo apura se um hacker de Araçatuba ajudou ilegalmente na investigação da Operação Raio-X
- Hacker invadiu o celular do prefeito de Araçatuba, Dilador Borges, e tentou chantageá-lo
- Reportagem mostra o conluio da Polícia Civil de Araçatuba e um hacker para investigar Márcio França
- Criminoso alega que hackeou médico da baixada santista na Operação Raio-X a pedido da Polícia Civil
- Inquérito apura venda de dossiê produzido pelo hacker, que está preso na Sérvia, por 5 milhões de dólares
Na noite do dia 23 de dezembro, na cidade de Kragujevac, na Sérvia, policiais prenderam o brasileiro Patrick César da Silva Brito, de 29 anos, que estava em seu apartamento alugado. Vizinhos suspeitaram que ele fosse um imigrante ilegal e alertaram a polícia. Estavam certos, mas Brito continua preso até agora porque – nem os vizinhos nem a polícia sabiam – seu nome consta na lista de procurados pela Interpol desde que a Justiça brasileira mandou prendê-lo pelos crimes de violação de dispositivo informático e extorsão. Brito quer obter asilo político em algum país europeu. Alega que, se for extraditado para o Brasil, corre o risco de ser assassinado.
A prisão em Kragujevac é o capítulo mais recente de uma história que começou com outra prisão de Brito, no dia 22 de janeiro de 2021, em Araçatuba, no interior de São Paulo. Agentes da Polícia Civil cumpriram um mandado de busca na modesta casa em que Brito morava na periferia da cidade. Apreenderam um computador, um celular, dois passaportes (um estava com data de validade expirada) e 10 mil reais em dinheiro vivo.
No mesmo dia, Brito prestou depoimento à Divisão Especializada de Investigações Criminais (Deic). Disse que usaria os 10 mil reais e o passaporte válido para se mudar para a Europa e confessou: sim, de fato, ele era um hacker, invadira o celular do prefeito de Araçatuba, Dilador Borges (PSDB), e da mulher dele para chantageá-los. Pedia 70 mil reais para não divulgar nas redes sociais informações supostamente comprometedoras contra o prefeito e a primeira-dama.
Caminhos do delegado e do hacker se cruzam
Liberado pela polícia, Brito deixou a delegacia, mas, no dia seguinte, recebeu um convite estranho: o delegado Carlos Henrique Cotait, um experiente policial de 50 anos, queria falar com ele pessoalmente. O encontro aconteceu no dia 26 de janeiro, no prédio do Deic. Em entrevista por videoconferência à piauí seis semanas antes de sua prisão na Sérvia, Brito relembrou a conversa.
Contou que o delegado Cotait propôs devolver os passaportes e os 10 mil reais em troca de sua ajuda para “prender pessoas”. Como o acordo aliviaria sua barra no caso da invasão do celular do prefeito, Brito topou. Mesmo sem ordem judicial autorizando que os objetos apreendidos em sua casa lhe fossem devolvidos, Brito deixou o Deic com os passaportes e o dinheiro.
Operação Raio X
Até o fim de fevereiro, o hacker voltou ao Deic outras sete vezes, conforme mostra o histórico de localização mapeado pelo Google em seu celular. Numa das visitas, entregou aos policiais uma lista de contatos do prefeito, cadastrados na nuvem. Um nome chamou a atenção da polícia: Cleudson Montali, um médico investigado na Operação Raio X, que apurava um esquema de corrupção que desviou 500 milhões de reais na área da saúde em quatro estados. “Perguntaram se eu tinha descoberto alguma ligação entre o celular do prefeito e o médico, mas eu disse que não”, conta ele.
Semanas depois, Brito já se encontrava na Sérvia quando foi escalado para ajudar a “prender pessoas” na Operação Raio X e recebeu sua primeira missão de porte: invadir o arquivo de um laboratório de análises clínicas para verificar a autenticidade de um exame de sangue e um laudo sobre a saúde de Cleudson Montali.
Os documentos haviam sido usados para que o advogado de Montali pedisse ao Supremo Tribunal Federal (STF) sua transferência do presídio para prisão domiciliar, alegando que estava deprimido, desnutrido e anêmico em razão de uma cirurgia de redução de estômago que fizera quatro anos antes. Com base no exame e no laudo médico, o ministro Gilmar Mendes, do STF, concedeu o pedido. Montali deixou a prisão e foi para casa.
Médico preso
Momento em que o médico Cleudson Montali foi preso pela Polícia Civil de Araçatuba. Ao seu lado direito, o policial civil Edison Luís Rodrigues, citado na reportagem.
Brito bisbilhotou os arquivos do servidor do laboratório a pedido do escrivão Felipe Pimenta, homem de confiança do delegado Cotait. O hacker gostava de Pimenta. Achava-o articulado e gentil. “Trocávamos muita informação sobre computação”, relembra. Na invasão do servidor, confirmou-se a suspeita da polícia: o exame de sangue original fora alterado depois de sair do laboratório. Montali não estava doente como dizia. De posse dessa informação, obtida ilegalmente, a polícia pediu à Justiça um mandado de busca no laboratório, obteve os documentos originais pelas vias normais e, assim, lavou a prova ilegal.
Até no laboratório houve desconfiança sobre os métodos da polícia. “Chamou a nossa atenção o fato de que os policiais tinham um script pronto”, disse um funcionário do laboratório que pediu para não ser identificado já que não está autorizado a falar em nome da empresa. “Eles sabiam como acessar o exame no nosso sistema e sabiam exatamente o computador onde estava o documento, entre os muitos que existem no laboratório.” Informado da adulteração dos documentos, mas não dos métodos da polícia, Gilmar Mendes revogou o habeas corpus. Montali voltou para a cadeia.
Hacker recebia dinheiro com frequência
Em retribuição aos seus serviços, Brito contou à piauí que recebia dinheiro com frequência da equipe do delegado Cotait, quase sempre em valores modestos. O maior pagamento que recebeu de uma única vez saiu das mãos do próprio delegado, quando o hacker ainda estava em Araçatuba. Ele conta que foram 6 mil reais, em notas de 100, pagos no dia 23 de fevereiro de 2021, na sede do Deic. Depois, quando já estava na Sérvia, segundo o hacker, a investigadora Cindy Orsi Alves Nozu, outra integrante da equipe do delegado Cotait, costumava deixar envelopes com dinheiro na caixa de correspondência da casa do hacker em Araçatuba, onde também mora sua mãe, Alessandra Cristina da Silva. Segundo contou em depoimento à Polícia Federal obtido pela piauí, Silva transferia o dinheiro para o filho por meio de casas de câmbio. De acordo com o hacker, os valores não passavam de 1 mil reais e eram sempre em espécie, para não deixar rastro da ligação entre a polícia e o hacker.
No dia 24 de janeiro deste ano, Cindy Nozu, uma policial de 36 anos que pretende ser delegada da Polícia Federal, quebrou as regras das entregas em dinheiro vivo. Fez um Pix para a avó de Brito. Foram apenas 60 reais, valor insignificante para explicar qualquer relação financeira, mas que serviu para comprovar a existência de um laço entre o hacker e a policial. Em um inquérito da Polícia Federal que apurou parte das denúncias feitas por Brito contra a equipe de Cotait, consta o comentário que Nozu fez para um colega sobre a transferência: “Fiquei com dó dele que tava nevando e eu mandei 60 reais por Pix pra avó dele, para a mãe dele mandar para ele lá.”
O delegado
Carlos Henrique Cotait é um sujeito empertigado, de olhos miúdos, lábios finos e estatura mediana. Educado e formal no trato social, ele costuma ser rude com seus subordinados, mas é um profissional respeitado pela tenacidade com que se debruça sobre qualquer investigação. Certa vez, num bingo clandestino, prendeu a própria sogra. Em mais de uma vez, suas investigações ganharam destaque na imprensa. A prisão em flagrante de um bicheiro e a investigação sobre um empresário suspeito de envolvimento com a Yakuza, a máfia japonesa, viraram reportagens no Fantástico, da TV Globo. A própria Operação Raio X apareceu na tela do programa dominical.
Com sua projeção na imprensa, Cotait ganhou um apoio tático de promotores e juízes da região de Araçatuba, o que lhe deu uma espécie de salvo-conduto em suas investigações, mesmo aquelas com suspeitas de heterodoxias. Numa das mais controversas, sobre um grupo de narcotraficantes no eixo Bolívia-Araçatuba, ele prendeu um técnico em informática. Depois, o preso virou seu “colaborador” e o ajudou a prender dois policiais civis desafetos de Cotait que, segundo o delegado, vinham extorquindo os traficantes. Mais tarde, constatou-se que as provas – imagens de um circuito de câmeras – foram adulteradas. (Antes de aliciar o técnico, o delegado chegou a procurar os serviços de outro hacker, à época preso na região de Araçatuba, para “analisar” as imagens das câmeras.)
O hacker
Patrick Brito, o hacker, teve uma trajetória inteiramente diferente. Franzino, falante e perspicaz, cresceu na periferia de Araçatuba e foi criado pela mãe e pela avó materna, depois que o pai foi assassinado quando ele tinha 7 anos. Descobriu muito jovem que tinha talento para a informática e, apaixonado por ciência, começou a cursar física na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Não se adaptou à cidade, deixou o curso e, depois de alguns meses morando nos Estados Unidos, voltou para o interior de São Paulo e resolveu mergulhar no submundo. “Eu tenho esse talento para informática, sei disso. Tentei ir pela legalidade, mas no Brasil você não tem oportunidade.”
Invasão à políticos
Hacker afirma ter invadido celular e equipamentos telemáticos dos políticos Hamilton Mourão e Jair Bolsonaro
Nos últimos anos, Brito começou a hackear celulares de políticos. Diz que invadiu o wi-fi do gabinete do então deputado Jair Bolsonaro, mas não encontrou nada relevante. Também afirma ter invadido o celular e o Facebook pessoal do então vice-presidente Hamilton Mourão. Não achou nada do seu interesse, mas diz que foi localizado por servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). “Eles me ligaram e disseram que sabiam tudo sobre mim e que era para eu nunca mais tentar invadir o celular do Mourão.” (Procurada, a assessoria de Mourão, hoje senador pelo Rio Grande do Sul, não se manifestou.) Com receio de ser preso, começou a planejar uma mudança para a Europa. Fez um empréstimo bancário de 10 mil reais e tinha esperanças de juntar algum dinheiro extorquindo o prefeito de Araçatuba.
Depois do bom trabalho fuçando os arquivos do laboratório de análises clínicas, o hacker foi acionado na Sérvia para uma missão mais graduada. No dia 14 de julho de 2021, recebeu fotos da tela de um celular, mostrando as senhas dos e-mails, das redes sociais e das contas bancárias de Franklin Cangussu Sampaio, um médico de Iguape, no litoral Sul de São Paulo, investigado na Operação Raio X. Seus celulares haviam sido apreendidos pela polícia meses antes, na primeira fase da Raio X, em setembro de 2020.
Sampaio era um peixe pequeno na investigação, mas tinha ligações com um peixe grande: o ex-governador paulista Márcio França, hoje ministro dos Portos e Aeroportos do governo Lula. Nos celulares do médico, a polícia encontrou conversas comprometedoras com Cláudio França e Caio França, respectivamente irmão e filho do atual ministro. As conversas sugeriam que havia entre eles um interesse especial em manter o controle sobre os indicados para os Departamentos Regionais de Saúde (DRS). E usavam a mesma sigla – DRS – para designar os diretores.
Além disso, Márcio França, quando governador, assinara diversos contratos com as organizações sociais que pertenciam a Cleudson Montali, o mesmo que constava nos contatos do prefeito de Araçatuba e estava sob investigação da Operação Raio X. Montali chegou a ser demitido do cargo de DRS em Araçatuba por improbidade administrativa, mas o então governador, com base em parecer da Procuradoria do Estado, trocou a demissão por suspensão de trinta dias. (A sindicância é sigilosa e não se conhece as razões oficiais que justificaram a substituição da punição.) O gesto levantou suspeitas entre os investigadores de que Montali operasse como testa de ferro de França. Um dos integrantes do esquema, em conversa interceptada pela polícia, diz: “Se o Márcio França ganhar [refere-se à disputa pelo governo de São Paulo em 2018], nós vamos ter a saúde de São Paulo na nossa mão.”
França não ganhou a eleição de 2018, mas ficou na mira da Operação Raio X – e o caminho mais rápido para esclarecer sua suposta participação no esquema passava por Franklin Cangussu Sampaio, velho conhecido da família do ex-governador. Junto com as fotos das senhas de Sampaio, Brito diz que recebeu a orientação de vasculhar tudo o que estivesse ao seu alcance. O hacker mostrou à piauí uma troca de mensagens pelo WhatsApp com a investigadora Cindy Nozu. Eis o diálogo:
– Levanta tudo o que você conseguir dele e me avisa – escreveu Nozu.
– O Cotait sabe disso? – perguntou Brito, querendo certificar-se que a ordem partira do delegado.
– Foi ele quem falou pra te passar – respondeu Nozu.
Brito cumpriu a ordem. Ele conta que descobriu investimentos em criptomoedas e uma conta de Sampaio no Saxo Bank, da Dinamarca, a qual não conseguiu acesso. Em arquivos pessoais de Sampaio armazenados em nuvem, diz que conseguiu encontrar várias fotos do médico com França. Além disso, o hacker clonou os números dos aparelhos celulares de Sampaio. Quando concluiu seu trabalho, Brito trocou mensagens com Nozu para saber se as investigações iam bem. Deu-se o seguinte diálogo:
– E aí os arquivos que eu te mandei vão te ajudar?
– Sim, nossa, e como – respondeu Nozu. – Já estou escrevendo um relatório que já passou de cinquenta páginas e a gente vai usar para pedir a prisão preventiva do Cangussu para ver se ele delata o Márcio França.
– Você só não pode colocar aquelas coisas de banco que é sigiloso, mas você pode pedir pro juiz – orientou o hacker.
– Sim, pode deixar – escreveu Nozu. – Eu vou colocar só as coisas de fonte aberta e as outras que você hackeou a gente pede para o juiz. Porque senão ele vai dizer que a prova é ilícita e vai querer saber como a gente conseguiu, mas como a gente já sabe do que se trata a gente obtém com ordem do juiz e dá um ar de legalidade.
Na mesma conversa, a investigadora comenta com o hacker das impressões do delegado Cotait sobre o futuro de Márcio França, que, naquela ocasião, pensava em se candidatar ao governo de São Paulo. Diz ela:
– Eu estava conversando com o dr. Cotait e ele me disse que se o MF [refere-se a Márcio França] virar governador a gente está na roça, hahaha.
Em seguida, faz uma sugestão ao hacker:
– Então será que não dá para hackear o Márcio França direto, ha-ha-ha.
– Eu vou acabar sendo preso por causa dessa história – responde Brito. – E nem dinheiro pra pagar advogado eu vou ter.
– Mas não vai acontecer nada, eles não podem chegar em você, e se chegarem a gente paga advogado para você, e se precisar o dr. Cotait conversa até com juiz, promotor, para eles facilitarem para você, a gente segura isso para não dar em nada.
Antes de encerrar a conversa, Nozu manda os dados pessoais de França, caso o hacker se disponha a vasculhar a vida do ex-governador.
– Se você topar, vai [sic] os dados dele aí.
Quando obteve os dados sigilosos de Franklin Cangussu Sampaio, além de invadir as contas bancárias do médico e clonar os números dos seus aparelhos celulares para chantageá-lo, o hacker pediu novos cartões de crédito e, para o local de entrega, deu o endereço de sua mãe em Araçatuba. Foi um deslize do hacker: ao saber por mensagens automáticas em seu celular que haviam pedido o envio de cartões físicos em nome dele, Sampaio, para Araçatuba, o médico ligou os pontos, já que ele estava sendo investigado justamente por policiais civis dessa cidade do interior de São Paulo. Em conversa com o seu advogado por WhatsApp, Sampaio chega a suspeitar que o hacker seria um policial da Raio X. “Será que esses caras que tão fazendo isso não são o pessoal da polícia lá? Os caras de Araçatuba tão com toda a minha documentação”, diz ele, em mensagem que consta do inquérito do caso, ao qual a piauí teve acesso. O advogado acertou na mosca: “A gente nunca sabe se algum policial de lá […] vazou para um hacker e tá mancomunado com ele em relação a isso.”
A desconfiança de Sampaio cresceu ainda mais depois que a Polícia Civil deflagrou uma operação de busca em sua residência – e, também, nas casas de Márcio França e do seu irmão Cláudio, no dia 5 de janeiro de 2022. Enquanto os policiais agiam, Brito começou a publicar mensagens no Facebook do próprio Sampaio. Dizia: “Franklin Cangussu Sampaio investigado pela Operação Raio X por desviar dinheiro destinado ao combate da Covid. Mais informações e documentos ao longo do dia.” Outra: “Márcio França, ex-governador de São Paulo e provável vice-governador numa chapa com Geraldo Alckmin nas eleições de 2022, o povo quer saber qual sua relação com Franklin Cangussu Sampaio e a Operação Raio X.”
Nos inquéritos, constam ainda mensagens que o hacker mandou diretamente para Sampaio nas quais tentava chantageá-lo. “Eu vou te mandar uma carteira em bitcoin, eu vou te dar até o final de semana para você fazer essa transferência. E caso contrário, acredite em mim, eu consigo mandado de prisão contra você e mais uma matéria no Fantástico.” A certa altura, Brito até diz que trabalha para a polícia. “Eu trabalho com eles em off”, escreveu. O hacker diz que fez tudo isso por orientação da polícia, que pretendia desestabilizar Sampaio até que ele concordasse em fazer um acordo de delação premiada contra o ex-governador França.
Sampaio não se desestabilizou e, ainda por cima, teve certeza de que o hacker tinha ligação com a polícia depois de ver uma das mensagens no seu Facebook. Nela, Brito comentou que, no dia em que se realizou a operação de busca, os policiais haviam apreendido “várias armas” na casa de Sampaio. A informação era verdadeira, mas, como o auto de apreensão nem havia sido formalizado, só um hacker mancomunado com a polícia poderia saber esse dado. Brito também publicou na rede social de Sampaio documentos sigilosos da operação que, naquela altura, só a Polícia Civil, o Ministério Público e a Justiça tinham acesso. Sampaio, então, resolveu denunciar o caso à Divisão de Crimes Cibernéticos da Polícia Civil de São Paulo, que, por sua vez, encaminhou o caso à corregedoria da instituição, por haver “elementos mínimos de participação de policiais civis na prática dos crimes aqui apurados”.
A investigação da corregedoria deflagrou a fúria do delegado Cotait. Assim que soube da novidade, fez um relatório para sua própria equipe no qual acusa Brito de ter tido acesso a “informações sigilosas” da Operação Raio X com o objetivo de extorquir Sampaio. Além disso, determinou a abertura de inquérito para apurar como o hacker invadiu os arquivos da polícia. E escreveu: “Além de criminoso, ao que parece, o remetente [refere-se ao hacker] possui um desvio psiquiátrico e mental.”
Dossiê de milhões de dólares
Num canto do restaurante Cascatinha, no bairro de Santa Efigênia, no Centro de São Paulo, uma mesa estava ocupada por seis homens – três de um lado, três do outro – e um envelope sobre a toalha. De repente, interrompendo o fluxo da conversa, um deles abriu o envelope e sacou um documento com cerca de noventa páginas. Era o dossiê do hacker – e estava à venda. O preço: 5 milhões de dólares. O advogado João Victor Abreu, de camiseta, cordões dourados no pescoço, anéis distribuídos pelos dedos das duas mãos, folheou o dossiê rapidamente. Mais tarde, em depoimento à polícia, contou que ficou com o dossiê, mas sem desembolsar nenhum tostão.
Duas semanas mais tarde, já na segunda quinzena de maio, um outro encontro, dessa vez em Araçatuba, no interior de São Paulo, reuniu três homens – dois dos quais estiveram no almoço no Cascatinha. Um deles, mais uma vez, sacou o dossiê de noventa páginas. O advogado Marcos Aparecido Doná, conforme contou depois à polícia, disse que lhe pediram 1 milhão de dólares. Doná informou que não pagou nada, nem ficou com cópia dos papéis.
Na página frontal, o dossiê de milhões de dólares trazia um título confessional: “Como eu me tornei o hacker do dr. Cotait.” O dossiê, que consta nos inquéritos do caso e ao qual a piauí também teve acesso, descreve em detalhes como o delegado Cotait convidou o hacker Brito a lhe prestar serviços ilegais – entre eles, invasões de celulares e de redes sociais de investigados, extorsões, acesso ilegal a servidores de empresas e tentativas de saques em contas bancárias.
Os advogados achacados – primeiro, em 5 milhões de dólares; depois, em 1 milhão – trabalhavam ou tinham contato com alvos da Operação Raio X, razão pela qual poderiam ser potenciais interessados no conteúdo do dossiê. Mas a casa caiu logo depois do segundo encontro para vender o dossiê. Nem o hacker, nem os achacadores – o advogado Paulo de Tarso Leite de Almeida Prado e seu genro Alexander Ramos, também advogado – conheciam uma conexão essencial: a de que o advogado Marcos Doná, ao qual ofereceram o dossiê por 1 milhão, tinha relações próximas com o delegado Cotait. Doná, ele mesmo, era o sujeito que, preso anos antes na apuração de narcotraficantes que atuavam entre Bolívia e Araçatuba, havia se tornado colaborador do delegado.
Assim que Doná contou que tentaram lhe vender o dossiê, a Polícia Civil abriu um inquérito para investigar o caso. Obteve na Justiça um mandado de busca na casa e no escritório de Ramos, o genro. Na manhã de 10 de junho passado, Prado, o sogro, retornava a Araçatuba, vindo de Mato Grosso do Sul, quando sua filha, casada com Ramos, lhe avisou que a polícia batera na porta da residência do casal. Prado então atirou o seu celular nas águas do Rio Paraná, que faz a divisa entre os dois estados. Para a polícia, alegou que não queria correr o risco de ter o celular apreendido e expor as conversas sigilosas com seus clientes.
À piauí, Prado negou ter negociado a venda do dossiê com João Victor Abreu no almoço em Santa Ifigênia e, mais tarde, com Marcos Doná, em Araçatuba. “Fui levar esses papéis para o João Victor Abreu a pedido do Patrick [o hacker]. Nunca pedi dinheiro a ninguém”, disse. Desde o almoço no Cascatinha, as informações contidas no dossiê – denunciando os préstimos ilegais de Brito à polícia – seguem fora dos processos judiciais relacionados à Operação Raio X, mas tornaram-se um pesadelo para o delegado Cotait e sua reputação de policial competente e implacável, embora suspeito de se valer de métodos investigativos controversos.
Mandado de busca na casa da mãe do hacker
A primeira providência do delegado, assim que se transformou em alvo de uma investigação, foi obter um mandado de busca na casa da mãe do hacker, na periferia de Araçatuba. Alessandra Cristina da Silva é acusada de habilitar chips de celular para as ações ilegais do filho. A operação ocorreu no dia 6 de abril do ano passado. “Levaram a tevê, meu celular, reviraram o telhado. Foram muito grosseiros comigo, como se eu fosse a mãe do Pablo Escobar”, disse ela à piauí. Desde então, os policiais estiveram na sua casa outras quatro vezes, todas com autorização judicial. Um quinto mandado foi cumprido na gráfica onde ela trabalhava – e resultou em sua demissão.
“Todo dia eu acordo às cinco horas e fico esperando a polícia chegar. Porque só quem já passou por isso sabe como é”, diz ela. A polícia pediu a prisão temporária da mãe do hacker com o argumento de que ela estaria atrapalhando as investigações. O pedido foi negado pela Justiça, mas o juiz Roberto Soares Leite proibiu Brito e a mãe de utilizarem a internet. “Como eles sabem que não podem me atingir por eu estar na Europa, ficam constrangendo a minha mãe”, diz Brito.
Em maio, assim que aconteceu a primeira busca na casa de sua mãe, o hacker enviou mensagens a cinco policiais da equipe do delegado Cotait com xingamentos e ameaças. Eram eles: os investigadores Nozu e Ary Rideto Kaneyasu, o escrivão Felipe Pimenta, o agente de telecomunicações André Luís Imai e o perito Hericson dos Santos. Dias depois, o hacker recebeu um e-mail, escrito em italiano, que dizia o seguinte: “Attenzione. Potresti essere fuori portata, ma altre persone che conosci non lo solo! Ecco il consiglio.” (Atenção, você pode estar fora de alcance, mas outras pessoas que você conhece não estão! Fica o alerta.)
Hacker é detido na Sérvia
Em paralelo, o delegado Cotait desengavetou o inquérito em que Brito era investigado pela tentativa de extorquir o prefeito de Araçatuba, que estava parado desde fevereiro de 2021. Desta vez, o inquérito tramitou rapidamente. Em maio de 2022, o hacker já estava denunciado pelo Ministério Público por extorsão e violação de dispositivo de informática.
Nesse mesmo caso, a equipe de Cotait ainda conseguiu na Justiça um mandado de prisão preventiva contra o hacker, com o argumento de que Brito fugiu para a Europa após extorquir o prefeito. Desde então, seu nome entrou na lista da Interpol. Por isso, ao ser detido no interior da Sérvia por suspeita de ser um imigrante ilegal, Brito está agora sujeito a ser extraditado para o Brasil.
“Megalomaníaco”
As mensagens trocadas entre o hacker e uma investigadora da equipe do delegado Cotait via WhatsApp são um elemento importante no caso. Cindy Nozu, a investigadora, disse à piauí que as acusações de Brito são “todas inverídicas, criminosas, fake news”. Ela acusou Brito de ser “megalomaníaco” e de querer “visibilidade na mídia”. “Ele já montou várias conversas e tem espalhado nas redes sociais. Todas elas já foram rechaçadas, porém não posso dar mais detalhes”, disse, alegando que as investigações são sigilosas. Na versão dos acusados, o hacker começou a compor as conversas em retaliação à ordem de prisão contra si e às operações de busca na casa de sua mãe.
A piauí teve acesso aos arquivos de foto e vídeo que mostram as conversas entre o hacker e a investigadora e submeteu o material a dois peritos. Eles avaliaram que não era possível verificar a autenticidade das conversas sem terem o celular do hacker ou de Nozu nas mãos. Nos inquéritos aos quais a reportagem teve acesso, também não consta nenhum relatório de perícia nos celulares dos integrantes da equipe do delegado Cotait capaz de confirmar ou desmentir a existência dos diálogos com Brito.
Lacunas
Com sua trajetória de hacker extorsionário, Brito construiu uma carreira criminosa que prejudica sua credibilidade. Mas a versão dos acusados, segundo a qual o hacker não tinha qualquer acesso aos policiais nem colaborava clandestinamente com as investigações, também tem lacunas. Uma delas são as sucessivas visitas do hacker à sede do Deic em Araçatuba logo depois que foi detido no caso da invasão do celular do prefeito. Outra é a liberação do passaporte para um sujeito que declarou em seu depoimento que tinha planos – concretizados logo depois – de mudar-se para a Europa. “É muito estanho a polícia devolver o passaporte sem nenhuma ordem judicial, no meio de uma investigação e sabendo que o investigado sairia do país”, diz a delegada Carla Patrícia Cintra Barros da Cunha, da Polícia Federal. “Na PF, só se devolve objeto formalmente apreendido com autorização da Justiça.”
Outra lacuna são as informações privilegiadas do hacker sobre a operação na casa de Franklin Sampaio, o médico de Iguape. Em relatório sobre o caso, o investigador Paulo Henrique Ianella, braço direito de Cotait no Deic, diz que o hacker teve acesso às câmeras de vídeo da casa de Sampaio e, assim, acompanhou a ação policial em tempo real. No documento, no entanto, não se aponta nenhum indício de que as câmeras foram acessadas. A própria investigadora Nozu não explica por que fez um Pix em favor da avó do hacker.
A ponta solta mais gritante, porém, são as fotos da tela do celular de Sampaio. As imagens foram feitas às 19h30 do dia 5 de julho de 2021 e chegaram às mãos do hacker na Sérvia onze dias depois. O dado mais comprometedor é que as fotos, às quais a piauí teve acesso, deixam entrever detalhes dos móveis do local onde foram tiradas: é a sala do Setor Especializado de Combate aos Crimes de Corrupção, Organização Criminosa e Lavagem de Dinheiro (Seccold), que fica no prédio do Deic, em Araçatuba, e só pode ser acessada mediante o uso de senha. A equipe de Cotait, composta por onze policiais, está lotada no Seccold.
Na noite do dia 5 de julho havia três pessoas na sala do Seccold, de acordo com o relatório do policial Paulo Ianella. São elas: os policiais André Luís Imai e Edison Luís Rodrigues, e o advogado Paulo Henrique Martins Rodrigues, amigo de Edison Rodrigues. As investigações não identificaram as impressões digitais da pessoa que segurava o celular de Sampaio enquanto a foto da tela era feita. Há uma suspeita de que Edison Rodrigues fez as fotos e vazou-as para o hacker. Isso apenas porque, quando Brito xingou os policiais depois da operação policial na casa de sua mãe, Edison Rodrigues foi o único poupado dos ataques.
Diante dessas lacunas, os policiais do Seccold, que antes negavam ter qualquer relação com Brito, passaram a admitir que, de fato, mantinham contato com ele, mas ressalvavam que o hacker nunca havia lhes prestado serviços ilegais. Em seu relatório, Paulo Ianella escreveu: “Patrick [Brito] se dispôs a ajudar a polícia em investigações, como ‘colaborador’, mas, pelo que consta, nunca nos forneceu nenhuma informação.”
“Dias nebulosos“
Em agosto passado, Cotait reuniu todos os investigadores e os escrivães do setor de inteligência. Um dos presentes, que pediu para ter sua identidade preservada, contou que, na ocasião, o delegado anunciou: “Vamos passar por dias nebulosos.” Cotait se empenhou em encontrar quem enviou as fotos para o hacker na Sérvia e passou a pressionar Edison Rodrigues. Uma das conversas foi gravada pelo próprio Rodrigues e obtida pela piauí. Nela, ouve-se o delegado, aos berros, dizendo o seguinte: “Eu tenho que saber o que tá acontecendo, nem que tenha que matar aquela desgraça daquele moleque, eu vou resolver… uma hora ele vai ser preso, nós resolve [sic].” Na mesma conversa, Cotait admite que sua equipe cometeu ilegalidades no trato com o hacker. “Só tem quatro pessoas que conversavam com ele. Só quatro idiotas. Edison, Cindy, Imai e Pimenta”, disse. Em seguida, o delegado diz sobre os quatro: “Vão ter que se explicar na corregedoria, sim. Cada um na medida da sua culpa. Conversava, mi-mi-mi… fumo.”
Defesa
A defesa de Edison Rodrigues, alvo das desconfianças do delegado, não quis se manifestar, sob a alegação de que o inquérito é sigiloso. Em e-mail enviado à piauí, Cotait disse que o hacker “nunca auxiliou” o Seccold nas investigações da Operação Raio X, que Brito esteve “apenas duas vezes” no prédio do Deic e que devolveu os passaportes porque “em nenhum momento os policiais tiveram conhecimento de que o hacker tinha intenção de deixar o Brasil” – ainda que a informação esteja no depoimento de Brito. Sobre o Pix feito pela investigadora Nozu, o delegado afirmou que a policial transferiu o valor simbólico “por solidariedade” à “situação de extrema pobreza” da avó de Brito. Ele também negou que tenha dado 6 mil reais em dinheiro vivo ao hacker. “Desafio Patrick [Brito], ou quem estiver afirmando isso, a provar o alegado.”
Cotait completou seu e-mail esclarecendo o seguinte: “Sempre quando necessário, contamos com técnicas especiais que dependem de ordem judicial por meio de ferramentas que constam em legislação processual penal vigente. E, absolutamente, jamais, contando com a colaboração de um criminoso. Importante pontuar que a Operação Raio X foi realizada em conjunto com o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Araçatuba. Assim, todos os atos de polícia judiciária foram fiscalizados diretamente pelo Ministério Público, de modo a demonstrar a lisura em todos os procedimentos, sem a participação de qualquer criminoso virtual na obtenção de provas.”
Imai e Pimenta não responderam ao contato da piauí.
A Corregedoria Geral da Polícia Civil do Estado de São Paulo ainda não concluiu seu trabalho. Procurado pela reportagem, o órgão não quis se manifestar. Mas os policiais estão preocupados. Na tarde de 20 de maio passado, durante suas férias na Europa, a investigadora Nozu mandou uma mensagem de WhatsApp para seu colega Pimenta. Estava aflita com as apurações. Eles mantiveram o seguinte diálogo, segundo consta em inquérito da Polícia Federal:
– Pimenta… Você acha que a situação aí tá tão preocupante assim? Sinceramente.
– Então – respondeu o policial. – Eu não achava, mas estou vendo o Cotait todo preocupado, aí eu comecei a me preocupar também.
Em 7 de dezembro passado, mesmo dia em que a piauí indagou Cotait sobre o relacionamento do hacker com sua equipe, o delegado Pedro Paulo da Costa Negri Garcia, subordinado a Cotait, pediu à Justiça que proibisse a revista de publicar esta reportagem, sob pena de multa. Justificou seu pedido assim: “Diante do perigo de ver a imagem de policiais civis, bem como da própria instituição Polícia Civil do Estado de São Paulo, manchadas, faz-se necessário que a publicação [da reportagem] que envolva Patrick César da Silva Brito e informações relativas à digna e exemplar operação policial denominada ‘Raio X’ seja proibida, tendo em vista os danos gravosos que podem porventura causar.” O Ministério Público rejeitou o pedido. O juiz Roberto Soares Leite também.
E assim termina a reportagem que a Polícia Civil não queria ver publicada.
POR ALLAN DE ABREU/Revista Piauí