A intenção de criar uma moeda comum entre Brasil e Argentina para transações comerciais foi confirmada durante a visita do presidente Lula (PT) ao país vizinho nesta segunda-feira (23). O projeto anima a equipe econômica do novo governo, enquanto ainda desperta dúvidas e especulações, bastante influenciadas por insucessos do plano no passado.
Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato comentam as possíveis vantagens para os dois países e os trâmites necessários para que a moeda saia do papel. Eles explicam que a intensa relação comercial entre os vizinhos poderia dar liquidez à nova moeda, que pode ser batizada com o nome “Sur” – que significa “sul” em espanhol.
Tanto Lula quanto seu homólogo argentino, Alberto Fernández, acreditam que a medida poderá impulsionar as transações financeiras entre os dois países, que caíram cerca de 50% entre 2010 e 2020, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Após uma fase de testes bilaterais, no futuro, a nova moeda também poderia envolver o Mercosul e outros países latinos.
Ao projetar uma nova modalidade monetária que não substituiria as moedas locais – no caso, o real e o peso – a lógica do acordo visaria uma redução da dependência de moeda estrangeira para transações financeiras. É o que explica o economista Rubens Sawaya, professor da PUC de São Paulo.
“Se criarmos uma moeda, uma relação que facilite essa relação comercial não só com a Argentina, mas com toda América Latina, isso beneficia muito o Brasil e os outros países. Isso porque reduziria a necessidade de eles terem dólares para pagar pelas importações que fazem do Brasil, porque se cria uma moeda como se criasse uma conta corrente entre os países. No final, só precisaria do saldo que seria acumulado nessa moeda em algum lugar”, ilustra.
Sawaya também explica que a estrutura comercial praticada internacionalmente desde o pós-Segunda Guerra Mundial mantém as economias dos países “amarradas” ao dólar, o que não é exclusividade da América do Sul.
“Quando você é refém de ter dólar para fechar suas contas externas, você depende de exportar para quem tem dólar e seu fluxo comercial acaba sendo dirigido e coordenado por quem vai te dar dólar. Assim, perdem-se outras oportunidades e limita-se o alcance das negociações”, complementa.
Nova moeda pode oxigenar campanha de Fernández à reeleição
Como o Brasil possui um superávit de exportações com relação à Argentina, os sinais dados pelas equipes econômicas é de que o Real possa ser uma referência cambial, pelo menos na primeira fase do projeto. Assim, o país teria a oportunidade de estabelecer certo protagonismo regional em um modelo que, se extravasado para outros países, seria semelhante à influência que China exerce sobre seus parceiros comerciais na Ásia através do yuan.
A proposta faria parte de uma agenda propositiva para reacender as economias regionais, que deve ser acompanhada de outras iniciativas brasileiras capazes de impulsionar a economia argentina. A primeira delas pode ser o investimento brasileiro, via BNDES, para a ampliação de um gasoduto que ligará a Argentina ao sul do país.
“Se há interesse dos empresários e do governo e nós temos um banco de desenvolvimento para isso, quero dizer que vamos criar as condições para fazermos o financiamento que a gente puder fazer para ajudar no gasoduto argentino”, disse Lula durante discurso no país vizinho.
Há nesses gestos um claro sinal de cooperação entre os dois países que finalmente possuem entendimentos coincidentes, após governos do argentino Mauricio Macri e de Jair Bolsonaro (PL). Para o professor Alcides Costa Vaz, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, há um cálculo esperado para também obter ganhos de imagem para ambos presidentes, que vivem momentos políticos diferentes.
“O governo Lula está iniciando, enquanto o de Fernández se encaminhando para o término e procurando a reeleição com uma série de desgastes e problemas econômicos que não foram ultrapassados de uma forma satisfatória nos últimos anos. A reeleição não será nada fácil. Porém, essa agenda mais propositiva em termos regionais certamente cumpre esse papel de servir de alavanca política”, analisa.
Uma visão corroborada por Sawaya, segundo quem a medida ajudaria a impulsionar a combalida economia argentina a retomar uma balança favorável de exportações, amenizando os altos índices de inflação e desemprego vividos nos últimos anos. “A Argentina sabe que, se ela ficar isolada, não vai conseguir sair da crise, estabilizar a moeda e conseguir se desdolarizar. (…) Se a atividade econômica for retomada na própria Argentina, e isso incentivado por uma ação conjunta e planejada entre Brasil e Argentina, isso beneficia todo mundo”, projeta o economista.
Medida tenta superar “ineficiência” de modalidades de transação direta
A retomada dos planos de uma moeda comum foi recebida com certo ceticismo pelo mercado, em razão do histórico de insucessos para sair do papel. Uma ideia iniciada ainda no governo de José Sarney, nos anos 1980, e que também apareceu em outros momentos ao longo dos anos.
Sob a batuta de Paulo Guedes, o ex-governo Bolsonaro também projetou uma moeda única para o Mercosul. Porém, além de envolver mais países, ela também substituiria as moedas locais, nos mesmos moldes do Euro – iniciativa mal vista por economistas brasileiros e que já foi descartada pela atual gestão.
Há também quem ache a criação de uma moeda desnecessária. Isso porque já existe o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SLM). O acordo que também permite os pagamentos internacionais em moeda própria, sem a necessidade de conversão, inicialmente abrigava o Brasil e a Argentina, mas depois passou a envolver o Paraguai e o Uruguai.
Segundo dados do Banco Central, o Brasil exportou R$ 4,10 bilhões e importou R$ 11,03 da Argentina nessa modalidade em 2022. E também fez transações com Paraguai e Uruguai que totalizam pouco mais de R$ 1,3 bilhão.
Para Pedro Raffy Vartanian, professor de Economia do Mackenzie, ao invés de criar uma nova moeda, seria mais adequado otimizar o SLM. “Seria possível extrapolar o sistema atual que permite a conversão de reais para pesos e para outras moedas de outros países parceiros”, afirma.
“Uma possível diferença com a nova moeda, é que nós teríamos uma base de troca de todas as moedas da América Latina ou da América do Sul, mas ainda assim o sistema atual se fosse expandido também daria conta de lidar com todas essas transações”, reitera.
Porém, a equipe econômica de Lula refuta essa hipótese por considerar que o mecanismo é insuficiente para a complexidade das operações e realidades cambiais e socioeconômicas. Segundo Gabriel Galípolo, secretário-executivo da Fazenda, os instrumentos continuariam existindo, mas seriam gradativamente substituídos pela moeda comum, sem excluir as operações em peso no Brasil.
“O sistema de pagamento em moeda doméstica, você vai pagar ou em uma ou em outra moeda. A ideia de uma moeda comum é justamente ter maior governança do ponto de vista de política econômica, através de um instrumento que é uma Câmara de Compensação, que vai permitir fazer isso, e simultaneamente endereçar o problema de conversibilidade de uma das moedas, em especial, que é o peso, que tem essa dificuldade de conversibilidade”, conclui.