Em ensaio anterior, intitulado “O crime segundo a psicanálise”, alertamos para a ampla gama de possibilidades que se abrem quando se faz a abordagem psicanalítica do fenômeno social “crime”. Hoje trazemos à baila mais uma dessas análises que é a teoria do bode expiatório.
No passado, quando a ciência ainda não havia desvendada a origem dos fenômenos naturais como raios, tempestades e secas severas, a explicação deles à luz do pensamento dominante –uma visão teocêntrica do mundo – era de que tais fenômenos consistiam em castigos divinos provocados por uma reação a algo de errado feito pelo grupo. Então para aplacar essa ira era necessário sacrificar algum animal, costumeiramente, um cordeiro ou um bode. Daí a origem da expressão “bode expiatório”.
Na psicanálise de Helmut Ostermeyer e Edward Naegeli, os desejos de praticar um crime, próprios do “id”, são reprimidos pelo “ego” em homenagem ao “superego”. Mas aqueles desejos não somem de nossa mente, são armazenados no nosso inconsciente e, a todo momento, quando uma outra pessoa pratica aquele mesmo delito que desejamos ter praticado, o nosso inconsciente é acionado e passa a questionar o acerto de nossas escolhas. É como se nosso “id” indagasse nosso “ego” se a escolha de não praticar o delito foi realmente a opção certa, afinal, a outra pessoa optou por praticar, seguindo o “id” dela e aparentemente nada lhe está a acontecer em termos de punição.
Então nasce um mal-estar entre nosso “id” e nosso “ego” (lembre-se do desenho no qual o “diabinho” diz: eu falei que você deveria ter me ouvido), e esse mal-estar apenas é amenizado quando aquela outra pessoa que praticou o delito, que também desejamos praticar, é punida. Nesse momento há em nós o reforço de que ouvir o “superego” foi a decisão certa a ser tomada (no desenho, seria o “anjinho” dizendo a nós: viu como eu estava certo). Transferimos nossa culpa àquele que praticou o que desejamos ter feito e não fizemos.
É por isso que não raro quando presenciamos alguém ser punido por algo errado que fazia (colando em uma prova, ultrapassando em local proibido, praticando um delito), há em nós um sentimento de satisfação, que chega a ser um alívio com a exclamação: “bem feito”! Pode ser, pois como já dissemos a psicanálise não é simplória, uma solução da tensão entre nossas instâncias “id”, “superego” e “ego”.
À luz dessa teoria, então, a sociedade pune alguém por um delito e isso serve para aplacar a tensão gerada em nós mesmo pelo conflito entre nosso “id” e o “ego”. E quanto mais punição, maior alívio teremos em nós. Ou seja, o criminoso seria nosso “bode expiatório”.
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Marcelo Yukio Misaka é Juiz de Direito, Doutorando e Mestre em Ciências Jurídicas/UENP, Professor Universitário e colunista do RP10