Há pouco mais de dois anos, em 13 de outubro de 2020, a Apple anunciou a nova geração de aparelhos celulares (iPhone 12). De forma inédita, os aparelhos passaram a ser comercializados somente com o telefone, além do cabo de transferência de dados e energia. O carregador de parede e o fone de ouvido passaram a ser vendidos de forma isolada.
Em potencial, existem ganhos para o meio ambiente, mas os cabos vendidos com os aparelhos de nova geração somente são compatíveis com carregadores mais recentes. É uma situação paradoxal, que também convida a algumas reflexões sobre as acusações de prática de venda casada que a Apple vem sofrendo nos últimos dois anos.
A ausência do carregador, desde o seu anúncio, foi recebida com comoção e criticismo, o que motivou no Brasil diversas medidas para compelir a Apple a incluí-lo na venda dos telefones.
Poucos meses após a divulgação, na Câmara dos Deputados, foi apresentado o Projeto de Lei 5.451/2020, para introduzir o art. 39-A ao Código de Defesa do Consumidor, de forma a incluir um rol de itens obrigatórios no comércio de telefonia móvel: “Art. 39-A. No comércio de terminal de telefonia móvel, o fornecedor fica obrigado a incluir bateria, fone de ouvido, fonte de alimentação e quaisquer cabos e adaptadores necessários à fruição do dispositivo.”
Já em processo administrativo n. 08012.003482/2021-65 junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, iniciado de ofício pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, recentemente, em 6 de setembro de 2022, foi estipulada multa no valor de aproximadamente R$ 12 milhões, além da: “cassação, junto ao órgão competente, de registro dos smartphones da marca iPhone introduzidos no mercado a partir do modelo iPhone 12, nos termos do art. 18, IV, do Decreto n.º 2.181/97, bem como a imediata suspensão, nos termos do art. 18, VI, do Decreto n.º 2.181/97, do fornecimento de todos os smartphones da marca iPhone, independentemente do modelo ou geração, desacompanhados do carregador de bateria.”
Na fundamentação da decisão administrativa, a prática foi enquadrada em quatro dispositivos distintos do Decreto n. 2.181/97 : “venda casada” – art. 12, I; “venda de produto incompleto ou despido de funcionalidade essencial” – art. 12, IX, d; “recusa da venda de produto completo mediante discriminação contra o consumidor” – art. 13, XIII e “transferência de responsabilidades a terceiros” – art. 22, III.
No mês seguinte, em 13 de outubro de 2022, foi proferida sentença em ação civil pública n. 1078527-71.2022.8.26.0100 aforada pela Associação Brasileira dos Mutuários, Consumidores e Contribuintes – ABMCC perante a 18ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP, para também reconhecer a hipótese de venda casada e julgar procedente o pedido de indenização por danos sociais fixados em R$ 100 milhões, além das obrigações de entregar um carregador para cada consumidor que deixou de recebe-lo e passar a vender novos aparelhos sempre em conjunto com seus respectivos carregadores.
A Apple, por sua vez, veio a público, em mais de uma ocasião, esclarecer que recorrerá das respectivas decisões, além de declarar que a ausência do carregador não implica prejuízos aos consumidores, pois há muitos outros já em circulação decorrente das vendas dos modelos anteriores, além de a prática acarretar sensíveis ganhos ao meio ambiente.
No site da Apple, há um esclarecimento sobre a diminuição da extração de mais de 550 mil toneladas de minério de zinco, cobre e estanho decorrente da prática adotada, além do fato de que, com as caixas mais leves e menores, são transportados 70% mais caixas por palete, o que contribui para a redução de emissões. É, então, declarado que estas duas externalidades positivas poupariam “mais de 2 milhões de toneladas de carbono, o equivalente a 500 mil carros a menos em circulação por um ano inteiro”.
Nesta linha, também há precedente em que foi julgado improcedente o pedido indenizatório e afastada a prática de venda casada, sob a justificativa de que o carregador não seria essencial para o funcionamento do aparelho, pois podem ser utilizados carregadores da Apple mais antigos ou de outros fabricantes, além do carregamento por indução, possível desde o iPhone 8[3] – sentença de 31 de agosto de 2022, na ação civil pública n. 5067072-35.2022.8.24.0023 ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina perante a 1ª Vara da Fazenda Pública de Florianópolis/SC.
Em relação ao meio ambiente, são verdadeiramente importantes os argumentos pelo consumo sustentável e pela redução do impacto ambiental. Tais objetivos sempre devem ser perseguidos, se possível sua compatibilização, a preços competitivos, com a satisfação das necessidades humanas e da melhora na qualidade de vida, princípio basilar da Política Nacional de Resíduos Sólidos, previsto no art. 6º, V, da Lei 12.305/2010.
Sucede que na análise das decisões contrárias à Apple, a recente mudança dos conectores dos cabos foi uma ocorrência significativa. Há poucos anos, os aparelhos são comercializados com cabos de entrada USB-C (conector menor do que a USB), ou seja, há vários carregadores em circulação que não são compatíveis com os cabos das últimas gerações do aparelho (embora os cabos mais antigos ainda possam ser utilizados com os aparelhos mais novos, mas não com a mesma eficiência).
Ainda, especula-se no mercado que os atuais cabos estão em vias de ser substituídos. Ao invés de um conector USB-C em uma ponta e o conector padrão da Apple na outra (o chamado Lightning – usado desde o iPhone 5), os cabos passarão a conter o conector USB-C em ambas as pontas. Inclusive, em 4 de outubro de 2022, o Parlamento Europeu aprovou Lei impondo, até 2024, o uso de cabos com entradas USB-C nas duas pontas para todos os aparelhos eletrônicos comercializados na Europa. Se esta mudança ocorrer também em outros países, naturalmente, inumeráveis cabos com a entrada Lightning se tornarão obsoletos.
Assim, de um lado, é realmente plausível que a comercialização de aparelhos sem os carregadores atenda a uma agenda de consumo sustentável; de outro, há recentes exemplos em que alterações nos produtos implicaram a obsolescência repentina de acessórios não tão antigos. As práticas parecem ser, portanto, absolutamente contraditórias.
Todo esse problema, a nosso ver, deve ser levado em conta para dirimir se a ausência do carregador na venda dos telefones acarreta práticas ilícitas como venda casada, se o carregador for compreendido com uma peça acessória ou venda de produto incompleto, se for vislumbrado como um componente.
Caso dispositivos eletrônicos, como o carregador, restarem compatíveis com as novas gerações do aparelho por período considerável, parece ser aceitável e até desejável que a comercialização seja realizada sem o carregador, em prol da redução de emissões e do consumo sustentável. Se, no entanto, a evolução tecnológica impuser contínuas alterações de atributos a provocar obsolescência abrupta de certas peças, não parece haver melhor solução do que a venda de todo o conjunto. Do contrário, os usuários serão obrigados, mais cedo ou mais tarde, a adquirir a peça acessória de forma isolada, o que caracteriza venda casada, ou serão forçados a se contentar com a subutilização do aparelho pelo uso de acessórios desatualizados, o que configura venda de produto incompleto.
No fim, é o equilíbrio entre evolução tecnológica e consumo sustentável que ditará como serão as leis, a regulação e as decisões judiciais do futuro.
Rogério Lauria Marçal Tucci. LL.M. pela University of Chicago Law School, Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e sócio do Tucci Advogados Associados. Conselheiro Suplente da AASP.