No conto “Suje-se Gordo!”, de Machado de Assis, o narrador descreve julgamentos da época pelo Tribunal do Júri. No primeiro julgamento do conto, o acusado era um rapaz simples, que furtara pequena importância em dinheiro, tendo, inclusive, confessado o delito. Por maioria de votos, ele foi considerado culpado pelo júri popular, principalmente pela influência de um dos jurados, “Lopes”, que fundamentou seu voto e a culpa do rapaz, verbalizando: “por uma miséria, duzentos mil réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!”.
Ocorreu que tempos depois o narrador e jurado participou de um outro julgamento, em que o acusado era um caixa de um banco, que subtraíra deste, grande importância em dinheiro. Esse acusado, porém, perante o júri, manteve-se altivo e calmo. O promotor dizia que o comportamento desse acusado significava a “revelação calma do cinismo”, enquanto a defesa sustentava que “a calma e a demonstração de confiança do réu revelavam a sua inocência”.
O narrador votou pela condenação do grande larápio, ficando, porém, surpreso, ao constatar que se tratava do mesmo “Lopes” que, como jurado, condenara o rapaz pelo furto de pequeno valor, com a fundamentação: “quer sujar-se? Suje-se gordo!”. Nesse segundo julgamento, na sala secreta, o desfecho do júri, por maioria, foi pela absolvição de “Lopes”, apesar de a prova ser bastante consistente para a condenação.
Conto machadiano de excelência, pois. A reflexão que dele se extrai é que a justiça não pode ser relativizada, para que o julgador decida motivado por interesse pessoal – que é diferente de convicção, desprezando-se a prova do processo. “Lopes” proferiu seu veredito contra aquele rapaz no primeiro julgamento para condená-lo, não com base na prova dos autos – que poderia ser suficiente ou não, mas com lastro no conceito deturpado, de que “o rapaz sequer sabia roubar” e mereceria, então, ser condenado.
Por outro lado, “Lopes” se considerava esperto, por “saber roubar”, apropriando-se de grande quantidade em dinheiro do banco e acreditava, assim, estar acima da lei, menosprezando a justiça. A aplicação da justiça requer, necessariamente, a imparcialidade do julgador na análise dos fatos e das provas do processo. Em sendo caso de condenação, esta deve atingir a todos os infratores da lei, sem distinção ou preconceito.
A justiça, assim, não pode ser seletiva, com a punição exemplar do pequeno criminoso, enquanto se safa o grande malfeitor, detentor de poderio político ou econômico. Talvez tenha pensado o grande mestre, Machado de Assis, ao escrever tal conto: “no Brasil, condenar ladrão de galinha é fácil, difícil é punir os “Lopes” da vida.
*Adelmo Pinho é promotor de justiça em Araçatuba e articulista do RP10
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