Publicado no dia 25 de abril, o relatório anual do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri) aponta que os gastos militares globais em 2021 tiveram um aumento real de 0,7% em relação ao ano anterior. O crescimento foi observado mesmo após a correção da inflação do período (que aumentou consideravelmente no ano passado em praticamente todo o mundo).
Pela primeira vez na história, o valor dos recursos investidos no setor de defesa de todos os países somados ultrapassou a marca dos US$ 2 trilhões. Em apenas um quarto de século, os gastos militares globais dobraram. Segundo a base de dados do Sipri, em 1996 foi despendido, em valores atualizados, US$ 1,06 trilhão, ante os US$ 2,11 trilhões do ano passado.
O relatório do instituto internacional mostra que o aumento dos gastos militares no ano passado acompanha uma tendência de crescimento relativamente constante nas últimas duas décadas. Após um período de diminuição das despesas com os setores de defesa ao longo da década de 1990, logo depois do fim da Guerra Fria, os gastos militares globais vêm aumentando, praticamente ano após ano, desde o início do século XXI.
Segundo o brasileiro Diego Lopes da Silva, pesquisador do Sipri que investiga a interação entre instituições, transições políticas e gastos militares, há um ponto de inflexão bem delineado nessa história: o início da campanha norte-americana Guerra ao Terror, após os atentados de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos, com as invasões do Afeganistão (em novembro de 2001) e Iraque (em março de 2003).
A movimentação da máquina de guerra norte-americana é só parcialmente responsável pela tendência. Outra fonte importante de crescimento de gastos militares das últimas décadas foi a China: “O aumento chinês foi constante ao longo de 27 anos”, aponta o pesquisador. Mas o gigante asiático não aumentou o orçamento de seu setor de defesa em relação ao Produto Interno Bruto (PIB): se manteve estável, entre 1,7% e 1,8%, durante mais de uma década a partir de 2003. “Os gastos militares acompanharam o crescimento econômico do país”, sublinha Lopes da Silva, esclarecendo que a razão disso era evitar se colocar como oponente explícito aos Estados Unidos.
Estados Unidos e China perfazem, juntos, 52% de todo o gasto militar mundial. O país ocidental, sozinho, é responsável por 38% de todas as despesas globais com defesa (atualmente em 3,5% do PIB, a taxa já chegou a 4,9%, em 2009), o equivalente aos gastos militares combinados dos outros 15 países que mais investem em seu poderio bélico, incluindo a própria China e a Rússia. Os russos gastaram no ano passado 4,1% do PIB em defesa (número que já chegou a 5,4% em 2016), o que corresponde a US$ 63,4 bilhões. Mesmo assim, o orçamento militar russo é 12 vezes menor que o norte-americano.
Tensões puxam gastos para cima
Apesar do papel central das três maiores potências militares na dinâmica de despesas com defesa, a região que mais contribuiu para o aumento real (após correção da inflação) de gastos militares nos últimos anos foi a Europa. Segundo o relatório The military balance 2022, produzido pelo think tank britânico Instituto Internacional para Estudos Estratégicos (IISS), os dispêndios militares europeus no ano passado tiveram um aumento real de 4,8% em relação a 2020 – é o sétimo ano consecutivo de crescimento do gasto na região.
As tensões iniciadas na Ucrânia em 2014, com a derrubada do governo pró-Rússia democraticamente eleito e a guerra civil deflagrada no Donbass (leste do país) entre separatistas russófonos e as Forças Armadas ucranianas, podem ser fatores importantes dessa escalada. Lopes da Silva explica que o crescimento ocorreu não apenas graças à recuperação econômica da Europa após a grande recessão deflagrada nos EUA em 2008, mas também em resposta à anexação russa da Crimeia, que ocorreu em meio às convulsões políticas ucranianas em fevereiro de 2014.
“Com o impacto da guerra na Ucrânia agora em curso, diversos países europeus, como a Alemanha, a Romênia e a Polônia, anunciaram a intenção de aumentar os gastos militares”, relata o pesquisador. Também de forma não surpreendente, os dispêndios militares da Ucrânia tiveram um aumento agudo a partir de 2014 (hoje, representam mais que o dobro do orçamento de 2013), mas não chegam a 10% do orçamento militar russo.
Não bastassem as questões de segurança no Leste Europeu, há tensões na Ásia, especialmente entre China e Taiwan – algo que acaba envolvendo, inevitavelmente, os aliados dos Estados Unidos na região do Indo-Pacífico. Para Peterson Silva, coordenador do Núcleo de Economia de Defesa e Desenvolvimento de Força da Escola Superior de Defesa (NCAD-ESD), uma instituição ligada ao Ministério da Defesa, essas tensões moldam a dinâmica dos gastos militares. “É possível observar um crescimento significativo dos orçamentos de defesa de países como Reino Unido, Rússia, França, Japão e Coreia do Sul. Certamente, as crescentes tensões geopolíticas na Ásia contribuíram para esse quadro em 2021.
E já podemos esperar um movimento similar em relação ao deste ano em razão das repercussões do conflito entre Rússia e Ucrânia em andamento.” De acordo com o pesquisador, a guerra na Ucrânia está sendo observada também para se pensar possíveis respostas para as tensões envolvendo China e Taiwan.
Também com forte impacto na região do Indo-Pacífico, a Austrália, o Reino Unido e os Estados Unidos celebraram em 2021 um pacto de cooperação de defesa. O acordo, apelidado de “Aukus” (acrônimo para as abreviações em inglês dos três países: Au, UK e US), faz parte da estratégia ocidental de contenção da China, cuja ascensão econômica transformou o país de 1,4 bilhão de pessoas em um forte candidato ao poder hegemônico regional.
“O plano da China é ter Forças Armadas de primeira linha até 2049 para diminuir as desvantagens de suas capacidades militares com relação aos Estados Unidos”, afirma Lopes da Silva. “A continuação do crescimento econômico chinês provavelmente alimentará o aumento de seus gastos militares.”
É possível que a tendência global de alta nas despesas com o setor defensivo seja atenuada ou interrompida brevemente, nos resultados dos próximos anos, pelos efeitos retardados da pandemia de Covid-19. “Há uma inércia no gasto militar, que é feito com planejamento de médio e longo prazo”, esclarece o pesquisador do Sipri. “Mas, mesmo que haja uma queda nos gastos, será efeito do choque econômico causado pela pandemia, e não de uma mudança política.”
Novas tecnologias também têm impacto
O desenvolvimento e a implementação de novas tecnologias de guerra constituem um dos aspectos mais importantes para a compreensão da dinâmica dos gastos militares. O relatório anual do Sipri mostra que o gasto em pesquisa e desenvolvimento militares dos Estados Unidos cresceu 24% desde 2012, enquanto as despesas com a compra de armamentos diminuíram em 6,4% no mesmo período.
Isso indica que o país vem priorizando o desenvolvimento de novas tecnologias de guerra em detrimento da compra de armas. Desde as últimas décadas da Guerra Fria, os Estados Unidos têm sido os pioneiros no desenvolvimento e na aplicação das tecnologias da informação ao seu poderio bélico, aproveitando a liderança que detinham na área, com um forte mercado civil de computadores.
Érico Duarte, pesquisador de relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), chama a atenção para esse fenômeno da “digitalização da guerra”: os computadores e a comunicação entre eles passam a ter um papel central na condução dos conflitos armados. Ele afirma que há uma dependência dos combatentes em relação às tecnologias digitais (não apenas em sistemas avançados, como os caças), “com uma sobrevalorização do computador como central não só para os aparelhos, como para a própria guerra”.
Como ele informa, isso levou a uma exagerada expectativa de vantagem estratégica. “É só uma ilusão achar que as tecnologias da informação compensam a falta de orientação política, de objetivos claros, de preparo e de viabilidade das Forças Armadas de um país.” Ou, nas palavras de Peterson Silva, “não adianta adquirir um novo caça sem pensar no treinamento adequado dos pilotos, sem considerar suprimentos, infraestrutura mínima e suporte logístico necessários para operar esse equipamento durante décadas”.
O investimento em pessoal, segundo Duarte, é o gasto militar mais fundamental. O problema é não ser muito visível. “Não serve muito para um congressista divulgar e o governo mostrar que está investindo na defesa do país”, afirma. O efeito macroeconômico do investimento em alta tecnologia – é fácil pensar na importância do complexo industrial-militar para a economia dos Estados Unidos, por exemplo – acaba se tornando muito mais notável do que os investimentos no elemento humano.
“As altas tecnologias dependem da qualidade de emprego, que é imaterial, intangível, e do perfil dos militares, da organização das Forças Armadas, de como elas conseguem maximizar seu melhor armamento”, explica Duarte. “Isso explica por que países com equipamentos equivalentes têm desempenhos tão diferentes.”