Pela primeira vez na história, o PSDB, fundado em 1988, corre o risco de não ter um candidato à Presidência da República. Depois que o ex-governador de São Paulo João Doria deixou a corrida eleitoral, por pressão de seus correligionários, um grupo de tucanos liderado pelo deputado federal Aécio Neves (MG) passou a defender uma candidatura própria. A iniciativa, no entanto, não tem endosso da cúpula do partido, que negocia a formação de uma chapa da chamada “terceira via” encabeçada pela senadora Simone Tebet (MDB-MS).
Na última pesquisa de intenção de votos publicada pelo Ipespe antes de Doria deixar a corrida, na última sexta-feira (20), o tucano aparecia com apenas 4%.
Ao olhar em retrospecto, o desempenho inexpressivo da sigla na presente correlação de forças pode parecer um ponto fora da curva para o único partido a conquistar uma eleição presidencial no primeiro turno desde a redemocratização – por duas vezes, na eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994 e 1998. A desidratação, que hoje reserva à legenda o papel de coadjuvante na política nacional e uma bancada legislativa mirrada, está longe, entretanto, de ser um acontecimento excepcional. Faz parte, na verdade, de um processo que começou em 2002 e que teve o seu ponto de inflexão após a eleição presidencial de 2014.
Perdas eleitorais
Na visão de Claudio Couto, cientista político e professor adjunto do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o PSDB começou a perder força a partir de 2002, quando o tucano José Serra foi derrotado na eleição presidencial pelo candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, com 53 milhões de votos contra 33 milhões. Paralelamente, na Câmara dos Deputados, o partido também começou a perder expressão, saindo de 99 deputados eleitos em 1998 para 70 em 2002.
Mas não é só isso. Somado ao declínio eleitoral, o PSDB iniciou sua caminhada para a direita do espectro ideológico, para fazer oposição e tentar ser o principal antagonista ao governo do PT. Isso foi mais um ingrediente para a desintegração da identidade partidária que nasceu, no fim da década de oitenta, como uma cisão da ala mais progressista do então PMDB.
É verdade que a partir de 1994, quando o PSDB conseguiu eleger FHC para a Presidência da República, já havia uma aproximação a setores da direita, como o antigo PFL (que se tornou DEM e, mais recentemente, fundiu-se ao PSL para formar o União Brasil). Tratava-se ali, no entanto, de uma convergência das contingências políticas da governabilidade.
“Quando o PSDB vai para o governo, o partido caminha mais para a centro-direita, até um pouco pelas restrições de governo que se colocam, e consolida a aliança com o PFL. Mas ainda era uma caminhada relativamente moderada para a centro-direita. Só que quando o PT vai para o governo e também faz esse movimento para o centro pelas contingências de governar, o PSDB acaba se ‘endireitando’”, afirma Couto.
A partir das eleições seguintes, no entanto, as perdas eleitorais se acumularam e o movimento para a direita se aprofundou. No pleito de 2004, a bancada tucana na Câmara saiu de 70 para 66 deputados, e Geraldo Alckmin perdeu para Lula por 58 milhões de votos contra 37 milhões em segundo turno. Em 2010, novo cenário de perdas: o PSDB conquistou 53 deputados federais, e José Serra perdeu a eleição para Dilma Rousseff (PT), por 55 milhões de votos contra 43 milhões.
Em 2014, ocorre o ponto de inflexão na trajetória de decadência do partido: o PSDB se radicaliza na figura do presidenciável Aécio Neves, que quase ganhou as eleições, mas perdeu para Dilma, em uma diferença de pouco mais de três milhões de votos. Em 2018, o partido chega ao pior desempenho de sua história numa eleição presidencial, com ínfimos 4,7% dos votos (cerca de 5 milhões) para Geraldo Alckmin. A bancada na Câmara chega a 29 deputados federais.
Se entre 1998 e 2014 os tucanos ficaram entre as maiores bancadas do Congresso Nacional, capazes de comandar a oposição dura ao PT, em 2018 o partido caiu para a nona posição na Câmara, atrás de legendas de porte médio como o Republicanos e PSD.
Ponto de inflexão
Para Claudio Couto, Aécio Neves, representando o PSDB, poderia ter saído da eleição de 2014 como um político “importante” de oposição ao governo eleito de Dilma Rousseff, mas “começou mal”. “Primeiro questionando o resultado da eleição, o que ajudou a construir essa descrença nas instituições. E, com uma atuação muito medíocre no Legislativo, não conseguiu se colocar como o verdadeiro líder da oposição. Para piorar tudo, veio aquela história da JBS”, afirma.
O ano de “2014 foi um ponto de inflexão importante, porque vai longe demais quando se questiona o resultado da eleição, sabendo que não há nenhuma falha, colocando a própria democracia sob dúvida”, diz. “Tudo isso vai desmontando esse partido como uma legenda forte e viável. E aí, em 2018, acaba, porque, se é para ser antipetista, o Bolsonaro é mais. E o partido perde completamente o espaço.”
A sigla não só perdeu espaço como se aliou, no Congresso e nas disputais eleitorais, à extrema-direita representa por Bolsonaro, concluindo a desintegração da identidade partidária que compôs a formação da sigla. O fator que mais representa esse avizinhamento ao bolsonarismo foi a campanha eleitoral de João Doria ao governo do estado de São Paulo sob o slogan BolsoDoria.
“Em vez de ser um partido que se descola do perfil bolsonarista, o PSDB faz o inverso: acaba virando uma linha auxiliar, tanto que existem tucanos atualmente dentro do Congresso que são muito alinhados ao governo Bolsonaro em questões até mesmo como a do voto impresso. Aí é um alinhamento que não é programático, mas que tem a ver com abraçar o projeto do bolsonarismo”, afirma Couto.
A inclinação à direita também é perceptível pelas lideranças do partido que passam a ter algum tipo de expressividade no cenário político, como João Doria, Bruno Araújo e Eduardo Leite, que se colocam mais à direita do que as lideranças mais tradicionais se colocavam, como Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso e até o próprio Geraldo Alckmin, atual pré-candidato à vice-presidência ao lado de Lula. A soma desses fatores “descaracteriza o PSDB como aquele partido das suas origens. E é nesse contexto que fica confortável para uma figura como o Doria não só entrar no partido como se tornar inclusive um nome forte internamente”.
A cientista política Rosemary Segurado, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), compartilha da visão de Claudio Couto: o PSDB abandonou o campo mais ao centro para incorporar práticas e discursos da extrema-direita. Para a professora, a associação de João Doria a Bolsonaro, sob o slogan BolsoDoria, significou que o partido subiu mais um degrau em direção à “decadência”, principalmente pela “maneira como Doria faz isso em 2018, passando por cima de muitas lideranças históricas que construíram o PSDB, como uma ruptura com o MDB para ter uma social democracia brasileira em 1988”.
O percurso, feito com uma base em uma “série de escolhas erradas”, fez com que o partido já saísse das prévias, que elegeram Doria como o candidato do PSDB à Presidência, em novembro do ano passado, “muito esfacelado”, com questionamentos, inclusive, acerca da transparência da votação. “A gente diz que um partido faz uma prévia para se unir em torno de um candidato. [Com o PSDB], foi ao contrário. E, mesmo seis meses depois, ainda não há uma definição, o que mostra a incapacidade do partido de tomar decidir ‘com que roupa eu vou’ nesse contexto eleitoral.”
PSDB, partido nanico
A análise de Claudio Couto é que o PSDB, como o partido que surgiu para ser uma versão mais progressista do MDB, “morreu faz tempo”. Até 2014, os tucanos compunham um partido que conseguia se colocar institucionalmente como oposição e que tinha uma agenda e propósitos bem definidos. Mas hoje “não dá nem para dizer qual é a agenda. Tem um grande vazio programático nessa direita, que não é a extrema-direita do bolsonarismo, mas é essa direita mais tradicional. Quem que tem um programa oferecer? Ninguém”, afirma Couto.
Dada a situação em que a legenda se encontra, “resta tentar sobreviver minimamente. Mas não acredito que essa tentativa de sobrevivência vai ser muito generosa. O PSDB vai sobreviver mais aos trancos e barrancos e definhando como partido que já perdeu a identidade. É um partido que tende a ficar um partido pequeno. Não descartaria uma fusão. Mas o PSDB, como a gente conheceu, acabou. O PSDB como um CNPJ pode existir e sobreviver durante um tempo, mas não tem nada a ver com aquele PSDB anterior que já houve”.
Aécio, que encabeçou a campanha de deslegitimação do resultado das eleições de 2014, agora diz que o momento é de reconstruir “a unidade do PSDB em torno do único caminho que permitirá que o partido continue a cumprir sua trajetória em defesa do Brasil, ou seja, com uma candidatura própria à Presidência da República”. O tucano deu a declaração após Doria anunciar a desistência da candidatura.
Lançando uma candidatura própria ou declarando apoio a Simone Tebet – e ser fagocitado pelo MDB, da onde saiu na década de oitenta –, o PSDB tende a ter uma votação de partido nanico nas eleições, na leitura de Rosemary Segurado. Além disso, “tem uma implicação que não é só o resultado da eleição presidencial, mas é que bancadas estaduais e no legislativo esse partido vai ter nesse caos? Provavelmente muito pequena”.
O pleito de 2022, nesse sentido, pode levar o PSDB a se voltar para as perdas eleitorais de 2018 com certo saudosismo. Afinal, nada é tão ruim que não possa piorar. “A política passa a fatura para as decisões”, afirma Segurado. “Ao não mostrar a grandeza política que o momento exigia, o PSDB se apequenou para virar um partido nanico”.