A crise das criptomoedas tem sido assunto frequente em manchetes internacionais. O mercado de moedas digitais que se propôs a ser uma alternativa à instabilidade da bolsa de valores novamente mostra que também é volátil às relações geopolíticas mundiais.
As criptomoedas são moedas digitais que utilizam um sistema de trocas com base na tecnologia blockchain e a criptografia. O blockchain é um grande banco de dados com uma lista crescente de registros, chamados blocos, vinculados através da criptografia. Cada bloco de informação contém um link para um bloco anterior, com registro de data e hora, além de dados de transação. Essa estrutura é o que impede a modificação dos dados dentro da cadeia blockchain, tornando o sistema livre de falsificações.
O Bitcoin, criado em 2009 por um usuário sob pseudônimo de Satoshi Nakamoto, foi a primeira criptomoeda em circulação no mundo. Hoje existem cerca de 300 milhões de usuários de criptos no mundo e cerca de 18 mil comércios que aceitam pagamento em moedas digitais.
A queda de cerca de 50% das cotizações das principais criptomoedas, como Bitcoin (BTC), Ethereum (ETH), Tether (USDT) e Binance (BNB), nos últimos seis meses foi a maior depressão observada desde o chamado “inverno cripto”, quando o valor de referência da BTC caiu de US$ 20 mil dólares no final de 2017 para US$ 3 mil em dezembro de 2018.
Nos últimos dois anos o BTC se recuperou e chegou a valorizar 550%, portanto a mais recente queda afetou principalmente os novos investidores.
Uma pesquisa da plataforma Gemini, que entrevistou cerca de 30 mil pessoas entre novembro de 2021 e fevereiro de 2022, indicou que 41% havia comprado BTC pela primeira vez em 2021.
Em novembro do ano passado, o Bitcoin chegou a valer US$ 68 mil, hoje é cotizado em torno de US$ 30 mil (cerca de R$ 146 mil).
Em países com altas taxas de inflação ou que sofrem algum tipo de bloqueio econômico internacional, as criptomoedas tornaram-se uma alternativa de reserva de valor, para o recebimento de remessas ou realização de transações comerciais livres de altas taxas bancárias.
Em 2021, o Vietnã foi o líder mundial em transações em criptomoedas, entre 154 países analisados pela empresa Chainalysis para criar o Índice de Adoção de Criptografia Global. Em seguida estavam: Índia, Paquistão e Ucrânia. A Venezuela passou da terceira colocação em 2020 para o 7º lugar em 2021. O Brasil está na 14ª posição.
“A tecnologia blockchain possibilita algo realmente inédito, que é esse processo de criar um token para dados, para informações, ou seja, de criar mercadorias da informação: qualquer conjunto de informação digital que pode ser criptografado como uma mercadoria única”, explica o coordenador do Núcleo de Estudos em Economia, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal do Ceará, Edemilson Paraná.
O estudo da Chainalysis ainda aponta que a adoção global das criptos cresceu mais de 2.300% desde o terceiro trimestre de 2019 até o mesmo período de 2021, e mais de 881% durante todo o ano passado.
Esse boom se deve, entre outros aspectos, às baixas taxas de juros e aumento da emissão de moedas pelas autoridades centrais dos países durante o ano passado, o que gerou uma maior liquidez no mercado mundial. No entanto, o “valor” desses ativos dentro de bolhas especulativas só cresce enquanto as pessoas estiverem dispostas a comprar o que se está vendendo. No caso de criptomoedas, o que se vende é um token inventado no ciberespaço.
“No último período houve um momento de relaxamento quantitativo, os Estados entraram com grande oferta de liquidez para diminuir a crise que a pandemia abriu. Isso num cenário de aumento de liquidez que iniciou com a crise de 2008”, afirma Edemilson Paraná, autor do livro “Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico”.
De acordo com distintas consultoras financeiras, cerca de US$ 1,28 trilhão circulam atualmente em criptomoedas em todo o globo. Se todas moedas baseadas nesse sistema de finanças descentralizadas (DeFi) estivessem reunidas em uma única entidade financeira, esta seria o 31º maior fundo de capital do mundo.
Apesar de assumir maior importância no mercado internacional, as transações em cripto não se comparam ao volume de capital que circula no mercado internacional através das grandes financeiras. Somente o banco JP Morgan possui cerca de US$ 3 trilhões em ativos sob seu respaldo.
“Acontece que esse dinheiro não está chegando nas necessidades sociais, não está sendo investido em infraestrutura, não está gerando renda e emprego, mas está servindo para produzir um exército de bilionários; São pessoas que estão surfando nessa onda de liquidez fácil e barata para investir em diversos setores especulativos no mundo, como as criptomoedas”, critica o pesquisador.
Esse movimento também foi acompanhado pelas autoridades brasileiras. Em março de 2020, o Banco Central aprovou um repasse de R$ 1,2 trilhão para aumentar a liquidez do sistema financeiro nacional. “Estamos fazendo o maior plano de injeção de liquidez e de capital já feito”, afirmou, na época, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
“Foi aprovado um pacote e não houve liberação de crédito e empréstimos. E por que não fizeram isso? Por que sabem que as pessoas estão quebradas, que a crise e a pandemia não têm previsão para acabar e, portanto, não emprestam dinheiro. E então colocam esse capital em fundos de investimento especulativo a curto prazo, com facilidades para entrar e sair, como as criptomoedas”, critica Edemilson Paraná.
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Moedas estáveis?
Além da desvalorização das moedas estáveis mais populares e antigas (“stable coins” – que possuem algum respaldo em dinheiro, ouro ou outros ativos), a queda do token Luna, vinculado ao blockchain Terra (UST), também acendeu o alerta da crise. Depois que o UST perdeu sua paridade com a variação de valor do dólar estadunidense, uma Luna deixou de custar US$ 120 para chegar a zero em apenas dois dias.
A Terra-Luna (UST) chegou a ser a quarta criptomoeda mais popular do mercado antes da quebra. Ao invés de possuir um fundo em alguma moeda convencional que lhe conferia lastro, o UST utilizava um sistema algorítmico para garantir sua paridade com as variações de valor do dólar estadunidense.
Basicamente o sistema estimulava que os usuários vendessem seus UST para elevar o valor de mercado e a cada UST queimado era emitido uma Luna no valor de US$ 1.
Do Kwon, CEO da Fundação Luna, que associado ao Terraform Labs desenvolveu o ecossistema Terra-Luna, chegou a ser acusado de haver lançado um sistema piramidal (sistema ponsi) após a falência do token. Na última semana, ele anunciou a injeção de 10 mil BTC, de um fundo de mais de 80,3 mil BTC que a Fundação alegava possuir, para salvar seu sistema de cripto. A medida teve o efeito boomerang, ao invés de dar mais confiança aos investidores em Terra-Luna, provocou o abandono dos fundos de investimento na criptomoeda diante do medo crescente de falência do novo token.
“Houve uma venda massiva dessa cripto, o que pressionou o mecanismo algorítmico de paridade e ela não conseguiu manter essa paridade. Com isso, veio uma pressão enorme de venda, que forçou a baixa no preço da criptomoeda, o mecanismo não deu conta de subi-lo”, detalha Paraná.
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Conferência Bitcoin
El Salvador tornou-se o 1º país a adotar a criptomoeda Bitcoin como moeda de curso legal, transferindo todas as suas reservas internacionais para BTC. A medida do presidente Nayib Bukele parecia ser promissora, já que em um ano o país mais que quadruplicou o valor das suas reservas. No entanto, com a crise atual, os questionamentos sobre a segurança da adoção do BTC como moeda nacional tomam força.
Entre os dias 16 e 19 de maio, San Salvador sediou um encontro para a discutir as “vantagens do Bitcoin” com 44 entidades financeiras internacionais, sendo 32 bancos centrais e 12 autoridades financeiras.
Entre os países representados estavam Paquistão, Angola, Moçambique, Egito, Paraguai, Equador, Costa Rica, Haiti, Honduras, entre outros.
Atualmente, El Salvador afirma ter 2.301 tokens de BTC como reserva e, apesar de permitir transações de compra e venda cotidianas em BTC há quase um ano por meio do aplicativo “Chivo Wallet” (carteira de bode, em tradução literal) e instalando 201 caixas automáticos no território salvadorenho, a moeda de maior circulação no país centro-americano continua sendo o dólar.
Para incentivar o uso da moeda digital e buscar valorizar a cripto no mercado internacional, Bukele anunciou um bônus equivalentes a US$ 30, que seriam pagos em BTC para aqueles que baixassem o app Chivo Wallet e passassem a usar a cripto. De acordo com dados oficiais, em janeiro deste ano, 61,5% da população salvadorenha teria aberto uma conta no aplicativo.
O Banco Central de Reserva indicou que, em janeiro, cerca de 5% das remessas enviadas do exterior utilizaram o novo sistema. Já a Câmara de Comércio do país registrou que, em fevereiro, apenas 14% da atividade comercial do país foi realizada em BTC.
Para o professor da UFC, a instabilidade da criptomoeda é o que dificulta seu uso para comércio diário. “Ele [Nayib Bukele] está livre do FMI, mas agora as reservas internacionais do país valem metade do que valiam há um mês atrás. E esse tipo de instabilidade é totalmente danosa para a economia do país”, afirma.
O especialista também chama atenção para a impossibilidade de criar políticas monetárias a longo prazo, uma vez que nenhuma autoridade central pode emitir Bitcoins. Pelo contrário, o próprio sistema tem o limite de 21 milhões de tokens para ser emitidos até 2140.
Apesar dos riscos, em abril, a República Centro-Africana tornou-se o 2º país no mundo a adotar o BTC como moeda de curso legal.
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Dinheiro tecnocrático
Mesmo que as criptomoedas tenham sido projetadas com ausência controle do governo e de uma autoridade central para ser mais estáveis à inflação e mudanças drásticas nas políticas, a realidade mostra que nenhum ativo está livre da influência de fatores externos.
Neste caso, o conflito entre Rússia e Ucrânia, a crise energética na Europa, assim como o aumento da taxa de juros por parte do Banco Central (Federal Reserve) dos EUA e outros bancos centrais seriam as causas imediatas da crise.
No passado 4 de maio, o BC estadunidense anunciou um aumento de 0,5% para 1% nas suas taxas de juros – o maior incremento dos últimos 22 anos. Na última terça-feira (17), o diretor do Federal Reserve, Jerome Powell, declarou que não hesitará em seguir aumentando a taxa para reduzir a inflação de 8,5%, a mais alta desde 1981. A promessa de campanha de Biden era aumentar a oferta de empregos e manter a inflação abaixo de 2% ao ano.
Da mesma forma, o Banco Central da Índia anunciou na quarta-feira (18) um aumento surpreendente em sua taxa de referência, enquanto o Banco Central da Austrália promulgou recentemente seu primeiro aumento da taxa de juros em mais de uma década.
“Quando os bancos centrais aumentam as taxas de juros, diminuem as brechas para investimentos em rendimentos de alto risco. Isso retira esse desejo por artigos especulativos de alto risco como são as criptomoedas”, explica Edemilson Paraná.
Crises cíclicas
Alguns autores defendem que o momento de desvalorização das criptomoedas responde a um ciclo de crises próprias do sistema capitalista e da especulação característica do mercado financeiro.
Se no início dos anos 2000 a crise das empresas de tecnologia provocou um efeito no mercado financeiro internacional, em 2008 foi a explosão da bolha especulativa imobiliária dos maiores bancos de Wall Street que implodiu naquele momento o sistema. Agora seria a vez das cripto.
Para o pesquisador Edemilson Paraná, a instabilidade é característica da natureza das criptos, que estão inseridas num contexto político, social e econômico global.
“As criptomoedas cumprem uma função social dentro da dinâmica do capitalismo contemporâneo. São um mecanismo necessário para o atual modelo de administração e concentração de riquezas do capitalismo financeirizado”, defende.
Há também outros elementos a médio prazo que contribuíram para a desvalorização do Bitcoin. No ano passado, a China proibiu as transações em criptomoedas em seu território. Além disso, vários governos passaram a discutir leis de regulação das moedas digitais, como Estados Unidos, Índia e Alemanha.
Apesar da instabilidade, as criptomoedas parecem ter vindo para ficar. O sistema blockchain, utilizado como lastro das moedas digitais, inaugura uma nova forma de criar mercadorias privadas únicas dentro do espaço digital.
“Criou-se um mecanismo técnico para encapsular uma forma de acumulação primitiva dentro do mundo digital. É como se você colocasse uma cerca num pedaço de informação e dizer que agora é uma propriedade privada, que pode ser vendida. Algo que o capital faz o tempo todo com a natureza, educação e com as ideias”, afirma Paraná.
Essa inovação tecnológica, além da descentralização do controle monetário, seria um dos principais fatores que aceleram os Estados na regulamentação do mundo cripto.
“Hoje já existem condições técnicas para que cada cidadão possua uma conta digital diretamente vinculada ao Banco Central, que seria gerida pelo Banco Central. Dessa forma, o Banco Central poderia realizar uma política pública e monetária de maneira direta com o cidadão. Por exemplo, esse fundo de R$ 1 trilhão [do Banco Central brasileiro], poderia ser emprestado diretamente aos cidadãos. Isso não acontece por razões políticas e econômicas nessa relação atual de bancos – Estado”, conclui Edemilson Paraná.