Após um avanço significativo nas negociações entre Rússia e Ucrânia, realizadas em Istambul, ataques contra civis em Bucha e Kramatorsk põem conversações em xeque e deixam futuro da guerra mais nebuloso. Os ucranianos afirmam que os ataques contra civis foram realizados por Moscou, que, por sua vez, nega e acusa a Ucrânia de forjar massacre de civis para culpar a Rússia.
O presidente russo, Vladimir Putin, afirmou na última terça-feira (12) que o lado ucraniano se distanciou dos acordos alcançados em Istambul e as negociações “voltaram a um impasse”.
“Essa inconsistência em pontos fundamentais cria certas dificuldades para chegar a acordos finais aceitáveis para todos na via das negociações. E até que isso não aconteça, a operação militar continuará, até que seja totalmente concluída e as tarefas que foram definidas no início desta operação sejam cumpridas”, afirmou Putin.
Mudança na estratégia russa
Os objetivos iniciais da operação militar, anunciados pelo presidente russo, eram a “desmilitarização” e a “desnazificação” da Ucrânia, bem como a libertação dos habitantes das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, regiões separatistas onde há grande concentração de cidadãos russos.
Além disso, a motivação da guerra também envolve disputas sobre os limites da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o mercado de energia na Europa.
À medida que os confrontos foram avançando, o Kremlin mudou a retórica sobre os objetivos do conflito, ao passo que anunciou um recuo das tropas dos arredores de Kiev, concentrando as operações militares em Donbass, a região das repúblicas separatistas pró-Rússia.
O analista-sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, em entrevista ao Brasil de Fato, defendeu a tese de que o Kremlin não estava se preparando para uma guerra total, considerando que as tropas executariam uma operação militar rápida. De acordo com ele, o objetivo inicial era realizar uma “operação de intimidação” para forçar uma mudança de regime na Ucrânia.
“O objetivo não seria uma guerra, mas uma intimidação da elite ucraniana. O cálculo era de que o Exército ucraniano iria se comportar da mesma forma como aconteceu na Crimeia, ou seja, seria desmobilizado, não estaria disposto ao combate”, argumenta.
Para o cientista político, o fracasso desta operação de intimidação levou a uma adaptação da estratégia russa. Ele lembra que foi declarado oficialmente por Moscou que a condição para as negociações é que a Ucrânia teria que abaixar suas armas e o Exército ucraniano deveria parar de resistir. “Agora esse objetivo nem é pronunciado”, destaca Ignatov.
Com o recuo das tropas russas dos arredores de Kiev, a expectativa é que a operação militar russa se concentre na tomada da região de Donbass. De acordo com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, as tropas russas estariam se preparando para uma ofensiva decisiva na região ainda nesta semana.
“Provavelmente o objetivo da Rússia agora é tomar Donbass e, aparentemente, a manutenção ou a ampliação da zona de controle no sul da Ucrânia. Depois esperar que Zelensky sucumba e comecem algumas negociações, para chegar a algum acordo de cessar-fogo, ou uma trégua”, afirma.
O cientista político aponta, no entanto, que, apesar do avanço na exigência russa de neutralidade da Ucrânia, não aderindo à Otan, é muito difícil que hoje haja uma possibilidade para um acordo de paz, porque “Zelensky declarou que não está disposto a concessões reais” em relação à questão territorial da Ucrânia.
O que representaria uma vitória para a Ucrânia?
Apesar dos impasses referentes às condições de ambas as partes, Moscou e Kiev afirmam querer negociar. Atualmente, as negociações entre os dois países continuam em regime online. Zelensky, fez um apelo para que a Europa aumente a pressão para forçar a Rússia a buscar a paz imediatamente.
O diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, afirma que é o campo de batalha que irá determinar os rumos da guerra. Ao Brasil de Fato, ele diz que ambas as partes estão orientadas a conseguir vantagens militarmente porque, independente do fato que a Rússia realizou a invasão, ela não conseguiu da Ucrânia a rendição, nem a Ucrânia conseguiu derrotar a Rússia.
“Enquanto esse equilíbrio não mudar, ambas as partes usam as negociações para mostrar à sociedade que eles estão se esforçando pela paz, porque a sociedade de qualquer jeito, inconscientemente, sempre quer a paz, tem medo da guerra. Então essas negociações exercem uma função de ritual”, declara.
O cientista político ucraniano destaca que o conflito russo-ucraniano assumiu um caráter “existencial”. De acordo com ele, para a Ucrânia esse confronto vai determinar se será possível no futuro a sua existência como uma nação política moderna, considerando os objetivos russos de levar o país vizinho à rendição e transformá-lo em uma espécie de “país-tampão” da influência de Moscou.
Ruslan Bortin observa que, formalmente, a Ucrânia está disposta a ser um Estado neutro, mas apenas com a condição de que os países do Ocidente forneçam garantias de segurança. Entretanto, as garantias de segurança exigidas hoje pela Ucrânia são mais altas do que as garantias de segurança que existem para os membros da Otan. No caso de uma possível nova invasão, a Ucrânia pede seja garantido o envio de tropas, fechamento do espaço aéreo, entre outros tipos de ajuda.
“Mas a vitória hoje para a Ucrânia, para a sociedade ucraniana, é a retirada total das tropas russas do território da Ucrânia, incluindo Donbass”, completa.
Acordos de paz não estão no horizonte
Outro aspecto que não só dificulta o processo das negociações de paz, mas exerce uma pressão sobre o líder ucraniano é a ocorrência de massacres contra civis. Nas últimas semanas, foi noticiado o caso da cidade de ucraniana de Bucha, onde, após a retirada das tropas russas, foram descobertos assassinatos de civis. O vice-prefeito da cidade alega que 50 moradores foram mortos pelas tropas russas. O Kremlin rechaçou as acusações.
Além disso, um ataque à ferroviária na cidade de Kramatorsk, no leste da Ucrânia, matou dezenas de pessoas, incluindo crianças. A Ucrânia afirma que a autoria do atentado foi da Rússia, que nega novamente que tenha realizado o bombardeio.
Para o analista Oleg Ignatov, o conflito chegou em um estágio que, apesar das perdas humanas e materiais, a Ucrânia está “moralmente na frente” em relação à Rússia, que, por sua vez, perde cada vez mais recursos e encontra dificuldade para reposição de suas tropas.
De acordo com ele, as acusações de crimes de guerra contra o Exército russo exercem um papel muito importante pois geram uma pressão sobre Zelensky a continuar a guerra, sobretudo com o fornecimento de uma grande quantidade de armamento do Ocidente.
“O mais provável é que essa guerra continue adiante, não há nenhuma pré-condição para que ela termine. A Rússia não está disposta a abrir mão de seus objetivos, mesmo que os objetivos tenham sido alterados”, diz Ignatov.
O cientista político afirma que se Moscou conseguir exercer pleno controle sobre Donbass, Putin poderá dizer que teve uma vitória e o objetivo foi conquistado, mas se a Rússia não conseguir estabelecer o controle sobre Donbass, “para a Rússia isso será um vexame militar, e Putin vai fazer de tudo para evitar isso”.
“Por isso eu acho que a situação irá continuar, a guerra irá continuar, e se a Ucrânia continuar recebendo uma grande quantidade de armamento, eu acho que nós podemos ainda assistir a isso ainda por muito tempo, até que os recursos se esgotem”, completa.