O governo argentino faz novos esforços para responder à crescente inflação e consequente aumento da pobreza no país. Nesta semana, o Ministro da Economia, Martín Guzmán, apresentou um projeto de lei, promovido pelo Poder Executivo, para taxar uma porcentagem do “lucro inesperado” de empresas no contexto do conflito bélico na Ucrânia.
O projeto prevê que uma porcentagem do lucro de empresas, que tenham tido ganhos superiores a dois milhões de pesos argentinos durante este ano, vire arrecadação do Estado.
Além disso, o ministro anunciou um bônus de pagamento único para trabalhadores informais, empregadas domésticas, pessoas jurídicas das categorias mais baixas e aposentados para o próximo mês. Para estes, o bônus será pago automaticamente no valor de AR$ 12 mil pesos (R$ 486), e para os demais setores, o valor será de AR$ 18 mil (R$ 729).
“Economia em recuperação”
“A economia continua se recuperando, mas além dos fatores domésticos, há pressões significativas pelo conflito bélico”, afirmou Guzmán durante a conferência de imprensa na última segunda-feira (18), ressaltando a pretensão do governo de preservar a renda dos trabalhadores e “garantir um caminho de equidade econômica e social”.
“Nas próximas semanas, vamos trabalhar convocando forças produtivas, trabalhistas e políticas da nossa sociedade para construir um mecanismo que permita capturar parte do lucro inesperado, que não é produto de investimentos adicionais, mas do choque que implica a guerra”, afirmou.
“Buscamos capturar parte dessa renda para que o Estado seja capaz de promover um desenvolvimento igualitário, atacar a pobreza infantil e a necessidade de uma maior inclusão social”, acrescentou o ministro.
Aumento histórico da inflação argentina
A batalha do governo argentino contra o aumento dos preços tem se mostrado pouco eficiente diante da perda do poder aquisitivo. Neste mês, o índice revelado pelo Instituto de Estatística e Censos (Indec) para março foi um aumento de 7,2% no preço dos alimentos, índice superior aos indicadores inflacionários anuais de muitos países.
Além disso, o aumento geral da inflação foi de 6,7%, o mais alto em 20 anos. No entanto, o problema não é de hoje: a inflação é um problema histórico da Argentina, e que coube ao governo de Alberto Fernández (Frente de Todos) enfrentar em paralelo ao pagamento da dívida de 44 bilhões de dólares deixada pelo governo do ex-presidente Mauricio Macri (Partido Republicano).
Diante da dificuldade de negociar com as grandes empresas, que dominam a produção e definem a competitividade e os preços no mercado interno, o governo tem apostado em políticas de redistribuição de renda, como a anunciada nesta semana.
Na mesma conferência, ao lado do ministro Guzmán – um dos nomes mencionados em rumores recentes sobre novas trocas no gabinete –, Fernández ratificou sua equipe de economia e as políticas executadas para atender às demandas dos setores populares, reconhecendo o que considera ser uma falha no projeto do seu governo.
“Onde sentimos que o nosso projeto está falhando? Na distribuição. Porque a inflação leva grande parte dos aumentos salariais e as rendas que fixamos para setores mais vulneráveis”, afirmou o presidente após o anúncio de Guzmán.
“Precisamos que os que tiveram lucros inesperados como consequência de uma guerra colaborem para ajudar os que ficaram postergados”, disse, pontuando a necessidade de sustentar a economia popular e promover trabalho genuíno, citando diretamente um dos pontos mais reivindicados pelas manifestações populares nas últimas semanas.
Paliativo
No entanto, a injeção do bônus econômico, apesar de bem recebido pelo setor popular, é apontado como um paliativo de curto prazo. “É um curativo em uma perna cortada”, destaca Amelia Barreiro, da organização Frente Dario Santillán Corriente Plurinacional.
“A crise nos territórios é profunda. São necessárias mudanças estruturais. Os programas de controle de preços que o governo lança com a intenção de cuidar do bolso dos trabalhadores não chega aos bairros periféricos, onde estão os que mais necessitam dessas medidas”, destaca.
Neste sentido, Amelia menciona um dos programas nacionais, o Preços Cuidados, que fixa o valor de determinados produtos da cesta básica em supermercados. Em bairros periféricos e em províncias mais pobres, no entanto, a principal fonte de consumo de produtos básicos não provém de grandes cadeias de supermercados, mas de comércios locais. “Acaba fomentando a concentração de compras nas grandes cadeias de consumo”, opina Amelia.
A necessidade de atacar a raiz do problema implica mexer em interesses de gigantes, algo que o governo, mantendo uma postura moderada, tem se mostrado pouco disposto a fazer. É o que aponta o doutor em Economia Sergio Paez, do Centro de Estudos Latino-americanos em Geopolítica (Celag).
“Uma resposta possível à inflação seria aumentar as alíquotas para que a rentabilidade derivada do atual contexto internacional se converta em direitos de exportação sobre os principais bens alimentares, que são parte do complexo agroexportador que lidera a inserção internacional”, afirma.
“O governo argentino não está apostando no caminho mais confrontativo com os setores econômicos em termos políticos, mas tenta melhorar a situação, pelo menos de forma transitória, dos setores mais afetados”, disse o economista.
O jornalista Jorge Falcone, integrante da organização OLP Resistir y Luchar, opina nessa mesma linha. “O bônus para trabalhadores e aposentados é muito bem-vindo, mas entendemos que se trata de um remendo mais que uma solução de fundo. Tudo indica que não há vontade posta em mexer no bolso dos de cima, e toda a penúria sobra para os de baixo”, ressalta.
“Tanto que as empresas já fizeram uma remarcação massiva de preços nas últimas horas e o mais provável é que isso cubra o valor das medidas anunciadas”, acrescentou o jornalista.
Em um contexto global de aumento da inflação, a guerra na Ucrânia e os efeitos da pandemia se manifestam em territórios que normalmente não são comumente afetados por esse problema. O Celag lançou no início desde ano um relatório que mostra como a inflação passou a afetar países como a Alemanha, os Estados Unidos e a França, por exemplo, que quadruplicaram seus índices em 2021.
Interferência do FMI
No caso da Argentina, sendo um dos países com indicadores mais altos de fuga de capitais ao exterior, e a maior dívida já outorgada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em sua conta, há medidas mais drásticas que se fazem necessárias – e que geram a crise interna na coalizão da Frente de Todos, marcando a diferença de posturas entre setores que defendem uma atitude mais radical da que vem ministrando Fernández na presidência.
O acordo firmado com o FMI busca, como anunciou Guzmán em março, aumentar a arrecadação e diminuir o déficit fiscal, atendendo às demandas populares. No entanto, a presença do FMI revisando as contas do país limitam a capacidade política para medidas econômicas mais profundas que o cenário de crise demanda.
“Uma reforma progressiva demandaria eliminar algumas remunerações do poder judiciário, que não pagam imposto de renda. Também seria necessário avançar sobre as vendas extraordinárias do setor bancário”, diz Paez, ressaltando que o setor bancário argentino é o mais rentável da América Latina e o segundo da região que menos paga impostos, perdendo apenas o Paraguai nesse ranking.
De acordo com Paez, “outro ponto nessa discussão é o imposto global às grandes empresas, impulsionado por Joe Biden, e aplicar um imposto mínimo a empresas multinacionais que operam no país e não pagam impostos. E, a longo prazo, rever a avaliação fiscal dos imóveis. Há 20 anos não há atualização, e isso impacta diretamente nos tributos provinciais e nacionais sobre a riqueza.”
O presidente afirmou na conferência desta semana que outras medidas ainda seriam anunciadas visando atacar “a gênese da inflação”.