Após a invasão do território ucraniano, a Rússia sofreu uma série de sanções sem precedentes. Entre elas, a proibição de importação de produtos de alta tecnologia, o fechamento do espaço aéreo da União Europeia e dos Estados Unidos, a exclusão do sistema financeiro Swift e da Copa do Mundo e até a interrupção da venda de produtos da Apple no país.
Ao mesmo tempo, países que já promoveram ações militares ao redor do mundo sem a anuência de organismos multilaterais – a exemplo de Israel, Arábia Saudita e Estados Unidos – não foram sancionados com o mesmo vigor.
Para o coordenador o Núcleo de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (UnB), Roberto Menezes, a aparente contradição pode ser explicada pela hegemonia econômica, política e militar exercida pelos norte-americanos no campo internacional.
“Joe Biden unificou os outros 29 países da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] em torno do seu argumento de que a Rússia é uma ameaça à segurança regional. E nós vimos que, com a ameaça nuclear, ela passa a ser ameaça à segurança global”, explicou Menezes.
Se não fosse na Europa…
Outro ponto levantado pelo especialista é que o conflito ocorre em território europeu – portanto, no norte global –, onde estão os países mais poderosos do capitalismo mundial. “Talvez se o conflito estivesse nas periferias e semiperiferias [do capitalismo mundial], provavelmente seria diferente: os Estados Unidos dariam mais espaço ao diálogo e à diplomacia”, avaliou.
Menezes ressalta que cerca de 80% das transações financeiras e comerciais do mundo são feitas em dólares dos Estados Unidos. “Então, essa capacidade de impor sanções vem primeiramente no uso dessa moeda. E aí fica quase quase inescapável para a Rússia o congelamento de seus ativos no exterior, porque uma boa parte deles estão em dólares”, pontua.
O especialista destaca ainda que a invasão norte-americana ao Iraque, em 2003, não obteve anuência da Organização das Nações Unidas (ONU), mas, ainda assim, transcorreu sem grandes sanções internacionais. Nas palavras de Menezes, a incursão dos Estados Unidos “violou a soberania” iraquiana, mesma acusação enfrentada pela Rússia na ofensiva contra a Ucrânia.
Israel contra Palestina
Em 2001, a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo fracassou depois que Estados Unidos e Israel abandonaram as negociações. Os dois países não aceitaram os textos discutidos, que acusavam o governo israelense de práticas de discriminação racial contra os palestinos.
“Quando se buscou associar os crimes de Israel contra palestinos como sendo correlatos a genocídio – portanto, crimes contra a humanidade –, Estados Unidos e Israel se retiraram do plenário das Nações Unidas. Por isso não houve a aprovação do documento”, afirma.
No Conselho de Segurança da ONU, lembra Menezes, quase todos os vetos apresentados pelos Estados Unidos entre 1945 e 1991 tinham como objetivo impedir sanções internacionais a Israel e seu avanço sobre a fronteira palestina.
Arábia Saudita contra Iêmen
Parceiro econômico dos Estados Unidos, a Arábia Saudita também encontra pouca resistência internacional em sua incursão militar sobre o Iêmen. O país chegou a ser alvo de questionamentos nos governos Biden e Trump, especialmente depois da morte de um jornalista crítico ao regime saudita na embaixada do país na Turquia. “Mas não passou disso”, como observa Menezes.
“A Arábia Saudita é uma das principais importadoras de armamento. Como os Estados Unidos são seus aliados, o argumento da democracia ou dos direitos humanos não é mobilizado. Prevalecerá o argumento de que, embora seja um parceiro problemático, a Arábia Saudita é fundamental, porque boa parte do petróleo do mundo sai dali”, detalha.
“Então essas alianças de fato deixam os Estados Unidos sem argumentos para se apresentar como promotores da democracia e dos direitos humanos no direito internacional como um todo. Basta ver a lista de guerras que eles promoveram desde 1945 e de graves violações de direitos humanos que os Estados Unidos apoiaram ou promoveram mundo afora”, aponta o pesquisador.
Sanções endurecem, mas preservam setor de petróleo e gás
Sanções “morais” contra a Rússia, que vêm ocorrendo no campo acadêmico, esportivo e artístico, até contribuem para aumentar a “russofobia”, segundo a especialista em Geopolítica da Energia e mestra em Economia Política Internacional Nathana Garcez.
Contudo, sua avaliação é de que as medidas ainda não atingem em cheio o setor de petróleo e gás, relevante para a economia europeia.
“Cabe destacar que os bancos afetados pela sanção no Swift não fazem transações econômicas em larga escala para o setor de petróleo e gás. A gente vê que está, sim, acontecendo uma proteção a esses setores russos de forma geral”, observa a pesquisadora.
O gás russo e o inverno europeu
Como países da União Europeia dependem diretamente do gás russo para manter suas populações aquecidas no inverno, Garcez afirma que eventuais sanções econômicas ao setor só devem durar até o próximo inverno europeu.
“O inverno acaba em três semanas, e aí a Europa tem uma folga, que pode ser quando algumas dessas sanções apareçam. Mas, assim que chega o inverno, os países precisarão ter reservatórios de gás natural cheios”, afirma.
Segundo Garcez, não há tempo viável para a construção de novos gasodutos ou oleodutos, nem para a formação de novas parcerias viáveis economicamente, prevê a especialista.
“A própria infraestrutura de gasodutos e oleodutos europeus é muito conectada à Rússia. Não entendo ser possível aumentar esse nível de sanções, avançando no setor petrolífero e de energia russo”, finaliza.