Pouco mais de dois anos depois do início da pandemia, está claro que os problemas não terminam no fim da fase de infecção aguda pelo novo coronavírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 10% e 20% dos pacientes considerados curados da Covid-19, por já não terem o vírus Sars-CoV-2 detectável em exames, podem apresentar alterações no organismo que os levam a desenvolver a chamada Covid longa, com sintomas que permanecem ou aparecem pela primeira vez três meses depois da infecção, afetando sua qualidade de vida e atrapalhando a produtividade no trabalho e nos estudos.
No Brasil, isso representaria entre 2,8 milhões e 5,6 milhões de pessoas. Estudos iniciais indicam que a maioria das pessoas consegue se reabilitar, mas outras, infectadas ainda no início da pandemia, mantêm os sintomas. Pesquisa FAPESP conversou com alguns dos pesquisadores que estão na linha de frente para saber o que descobriram até agora sobre as causas e consequências dessa manifestação da doença.
“Hoje há estudos que listam mais de 200 sintomas, além dos mais conhecidos, como fadiga, cansaço, falta de ar e disfunções cognitivas ou psiquiátricas”, explica o médico Regis Goulart Rosa, do Hospital Moinhos de Vento em Porto Alegre e autor de estudo publicado em fevereiro na revista BMC Medicine. Rosa é membro do grupo de trabalho da OMS de Uniformização de Desfechos de Pesquisa em Covid longa.
Além dos pulmões, nos quais se instala primeiro, a Covid longa atinge órgãos como o coração, os rins e os ouvidos, os sistemas endócrino, imune, gastrointestinal e nervoso, e pode causar doenças metabólicas, fadiga, depressão, dificuldades cognitivas e de memória, entre outros problemas (ver infográfico ao fim desta reportagem). Além dos efeitos na saúde, as consequências desses extensos danos são também sociais, emocionais e econômicas.
Ainda não há dados para confirmar se as vacinas ajudam a amenizar o problema ao conter a infecção aguda, pois os pacientes que completaram o esquema vacinal no segundo semestre de 2021 não foram estudados. Pesquisadores também não sabem se as variantes do vírus causam sintomas diferentes no longo prazo e quais os melhores tratamentos. O problema parece surgir como resultado da inflamação causada pelo vírus, mas o mecanismo que causa a Covid longa é desconhecido (ver algumas das hipóteses no infográfico abaixo).
“Entre os pacientes que se recuperaram da Covid-19 moderada ou grave, 85% apresentaram pelo menos um sintoma que reduz sua produtividade ou qualidade de vida”, afirma o psiquiatra Geraldo Busatto, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP). Ele coordena um grupo dedicado ao estudo da Covid-19 que reúne especialistas em diversas áreas.
A equipe avaliou 820 pacientes hospitalizados no HC-USP na primeira onda da epidemia no Brasil, entre abril e maio de 2020, e fez reavaliações com questionários e exames de 6 a 11 meses depois. Foram levados em conta os principais sintomas da Covid longa – falta de ar, cansaço, dores musculares, distúrbios psiquiátricos, perda de olfato e de paladar – e outras possíveis manifestações persistentes da doença. Alguns dos sintomas, como cansaço e dores no corpo, atingiram cerca de 40% dos recuperados.
“O estudo não distinguiu entre casos moderados e graves de Covid-19, mas dados da literatura científica mostram que os sintomas posteriores são bem mais frequentes em quem teve doença grave na fase aguda”, explica o pneumologista Carlos Carvalho, da FM-USP, que participa do projeto coordenado por Busatto. “Mesmo assim, pacientes com manifestação leve da doença também podem vir a apresentar sintomas de Covid longa.”
Um exemplo dessa situação é Ana Sharp, professora de dança em uma escola particular paulistana. Ela teve sintomas leves de Covid-19 e não precisou ser internada. “A infecção terminou, mas alguns sintomas continuaram, como o sono excessivo: dormia incontrolavelmente, em qualquer canto, e sentia um enorme cansaço quando fazia força”, conta. Além disso, mais de um mês depois da fase aguda da doença ela ainda sente dificuldade em se concentrar e se lembrar de tarefas.
Casos graves
“O tratamento de doenças graves, que causam inflamação intensa e afetam múltiplos órgãos, é uma provação ao corpo e sequelas são esperadas”, ressalta Rosa, especialista na reabilitação de pacientes que saem da Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A sedação prolongada, necessária para paralisar o paciente durante a ventilação mecânica, pode causar disfunção cognitiva e estresse pós-traumático. Bloqueadores musculares, usados para que o paciente não arranque os tubos, e os medicamentos corticoides, que reduzem a inflamação, causam fraqueza muscular e diminuem a capacidade física. E a própria intubação e a eventual traqueostomia levam a dificuldades para engolir, além de aumentar o risco de pneumonia.
“Como o pulmão é o órgão de entrada do vírus, ele é o mais prejudicado na Covid aguda e na longa”, afirma Carvalho. No mesmo conjunto de 820 pacientes, ele observou que quase dois terços deles reclamavam de fraqueza, fadiga, falta de ar e cansaço entre 6 e 11 meses depois da infecção. “Mas raramente reclamavam de dores no corpo e dor de cabeça, por exemplo; menos de 20% se queixavam de alteração no paladar, no olfato, nos batimentos cardíacos ou de queda de cabelo”, relata o médico.
Segundo Carvalho, os pacientes também sentiam sonolência, insônia, depressão e ansiedade. Os idosos que ficaram um tempo prolongado na UTI com ventilação mecânica tinham mais frequentemente sinais de inflamação e de cicatrização nos pulmões, além de queda de volume pulmonar e de oxigenação. Quase um quarto dos pacientes com sintomas de Covid longa nos pulmões se recuperou um ano depois, mas com sequelas: tomografias indicam inflamação ou fibrose pulmonar, tecido conjuntivo que se forma como parte do processo de cicatrização.
“No começo da pandemia achávamos que só o pulmão era afetado, mas logo percebemos que os rins também eram”, afirma a nefrologista Lúcia Andrade, da FM-USP. A médica se lembra de uma paciente que chegou ao ambulatório com um único sintoma: insuficiência renal, quadro em que os rins não funcionam. Foi diagnosticada com Covid-19. “Muitos tiveram doença renal na internação e ficaram com sequelas ou não recuperaram a função renal”, conta a nefrologista.
Podem surgir também síndromes metabólicas, inclusive diabetes e hipertensão. “Não sabemos ainda se são reversíveis”, ressalta Andrade. Ela estudou um grupo de 145 pacientes que foram internados ou passaram pela UTI. Após um ano, cerca de 65% deles se recuperaram ao menos parcialmente, mas cerca de 35% continuam com problemas graves e perderam de 50% a 60% da função renal. Nove pacientes ainda precisam de hemodiálise – a filtragem do sangue para eliminar toxinas, suprindo a função renal. Será preciso acompanhá-los para descobrir se o quadro vai melhorar ou estacionar. “A taxa de recuperação na Covid longa é mais baixa do que em outras doenças que causam lesão renal, como a sepse, uma infecção generalizada”, observa Andrade.
Memória e cognição
Com frequência, a Covid longa provoca perda de memória e ansiedade generalizada de seis a nove meses após a alta hospitalar, segundo estudo do HC-USP com 425 pacientes internados em UTIs ou que passaram pelo hospital por pelo menos 24 horas publicado em janeiro na revista científica General Hospital Psychiatry. “Encontramos mais de 50% de perdas cognitivas relatadas pelos pacientes e confirmadas por testes objetivos”, relatou ao podcast Pesquisa Brasil o psiquiatra Rodolfo Damiano, da USP, primeiro autor do artigo.
O estudo também diagnosticou, nesses pacientes, 15,5% de ansiedade generalizada e 8% de depressão. Os pesquisadores observaram que o prejuízo cognitivo e a saúde mental estavam relacionados com a fragilidade e o estado geral de saúde do paciente. “A internação por Covid-19 envolve muitos fatores de risco para a saúde mental, além da própria doença grave e da internação; a ausência de familiares, como estabelece o protocolo de tratamento, pode piorar o quadro de ansiedade”, assinala Rosa. Outro fator é a perda de força física, que pode fazer com que o paciente precise de um cuidador, perca o emprego e passe por estresse financeiro.
Um estudo preliminar com 49 pacientes com idade média de 38 anos, que tiveram casos leves de Covid-19, indicou que cerca de 25% deles tiveram dificuldades na percepção espacial até 16 meses após a infecção. “Eles se movimentavam com dificuldade e derrubavam objetos”, relata o psiquiatra Marco Romano-Silva, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, que coordenou o estudo, divulgado em fevereiro de 2021 como preprint na plataforma medRxiv. A equipe de Romano-Silva verificou as alterações em testes simples, como copiar imagens abstratas e depois tentar desenhá-las de memória. Uma versão ampliada do estudo, com mais pacientes, está atualmente em análise para publicação em um periódico científico.
Segundo o artigo, os testes estão associados a capacidade de aprendizado, resolução de problemas e habilidades necessárias para realizar atividades diárias. “Também foram avaliados, por meio de questionários, fatores socioeconômicos e sintomas emocionais, mas eles não explicavam o resultado”, afirma o psiquiatra. Os sintomas foram confirmados em testes de ressonância magnética, que mostraram alterações no corpo caloso e no giro do cíngulo, regiões do cérebro relacionadas à capacidade visual e espacial. Testes sanguíneos indicaram uma provável causa do problema: inflamação no cérebro dos pacientes. “Falta encontrar terapias que ajudem a aliviar os sintomas e verificar se o problema ocorre em crianças”, diz Romano-Silva.
Um estudo feito por uma equipe da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e divulgado como preprint no repositório medRxiv no início de março, documentou alterações no cérebro por meio de imagens cerebrais de pacientes antes e depois da infecção com Covid-19. Em casos graves foi possível detectar redução na matéria cinzenta do córtex orbitofrontal, estrutura importante para a tomada de decisões, e no giro para-hipocampal, envolvido na recuperação de memórias, além de alterações nas áreas ligadas ao olfato e uma redução no tamanho global do encéfalo. O estudo não permite dizer se o mesmo ocorre em casos leves.
“Na clínica, estamos recebendo pessoas fadigadas, com distúrbio de sono, alta ansiedade, depressão e muitas queixas da cognição. Algumas não conseguem dirigir, escrever direito nem trabalhar por várias horas”, conta a neurologista Clarissa Lin Yasuda, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que desenvolveu sintomas de Covid longa e tem tido dificuldade de atenção e memória. “A fadiga é mental e física.” A pesquisadora se preocupa com uma possível onda de pacientes com sintomas persistentes após o surto da variante ômicron do vírus Sars-CoV-2.