Laís Martins | A Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado deve votar nesta quarta-feira o projeto de lei 3.723/2019, que altera o Estatuto do Desarmamento e as regras de registro, cadastro e porte de armas de fogo. Se aprovado, o projeto pode dar porte de arma municiada e pronta para uso (isto é, com cartuchos com as “balas”) aos 515,2 mil colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (CACs) registrados no Brasil em janeiro deste ano.
A proposta surgiu de um anteprojeto redigido pelo então Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, Onyx Lorenzoni, em junho de 2019. O PL pretende regulamentar em lei algumas das flexibilizações no acesso e controle de armas de fogo trazidos pelos decretos do presidente Jair Bolsonaro. O argumento usado por parlamentares armamentistas é o de que é preciso dar “segurança jurídica” aos CACs, cujas benesses poderiam ser eventualmente revertidas por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
Atualmente, quatro dos decretos de Bolsonaro, editados às vésperas do Carnaval de 2021, estão nas mãos do STF. Em abril do ano passado, poucos dias antes destes decretos presidenciais entrarem em vigor, a ministra Rosa Weber, em decisão individual, suspendeu trechos dos textos. Em plenário, os ministros começaram a votar se a decisão de Weber deveria ser mantida, mas a votação foi suspensa em setembro de 2021 quando o ministro Kássio Nunes Marques pediu vistas.
A preocupação com uma eventual decisão do STF apressou o relator do PL na CCJ, senador Marcos do Val (Podemos-ES), para tentar votar o texto no Senado em dezembro, logo antes do início do recesso parlamentar. “Eu coloquei para votação rápida para que durante o recesso o STF não tomasse uma decisão monocrática e virasse um caos jurídico”, disse o senador à Agência Pública. “Por isso que eu coloquei para votação, iria seguir o relatório de como veio da Câmara dos Deputados, apesar de eu não concordar com alguns pontos”.
A votação não aconteceu em dezembro por um pedido de vistas coletivo. Senadores da oposição — e até o governista senador Eduardo Girão (Podemos-CE) — defenderam um debate mais aprofundado sobre o tema.
“Não vejo viabilidade de votar um assunto tão polêmico em ano eleitoral. É evidente que durante todos esses anos do governo Bolsonaro, houve uma corrida pela flexibilização do porte e da posse de armas, um claro equívoco em termos de segurança pública que é dever do Estado e não do cidadão”, disse à Pública a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que integra a CCJ do Senado e é criadora da Frente Parlamentar pelo Desarmamento. “Recentemente, já vimos casos de bandidos que se aproveitam das brechas abertas para colecionadores de armas e passaram a despejar munições e armas para o crime organizado. É um tema que requer muito cuidado”, complementou.
Segundo Do Val, o pedido de vista teria sido uma estratégia da oposição, já que haveria maioria para aprovar o texto caso fosse submetido ao voto. Após o pedido de vistas, Do Val revelou ter ido ao Supremo Tribunal Federal para conversar com um ministro — cujo nome ele não revelou — para explicar que havia um projeto em tramitação na CCJ que tratava de pontos semelhantes aos decretos e que “esperava que não tomassem uma decisão durante o recesso”.
Apesar de não ter recebido garantias, o senador disse que lhe deram “tranquilidade”. “Ele [o ministro] não sabia que estava tramitando um projeto sobre esse assunto e ele falou ‘olha eu vou conversar com os pares e informá-los’. Ele só falou que eles não sabiam que tinha um projeto tramitando, que eu falei que já estava aprovado na Câmara dos Deputados”, disse o senador.
O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados em novembro de 2019, com 283 votos favoráveis e 140 contrários, mas ficou engavetado na CCJ do Senado até novembro do ano passado, quando voltou a tramitar rapidamente.
Projeto liberaria porte de arma para CACs sem restrições, apontam críticos
Um dos pontos trazidos pelo projeto de lei é a permissão do porte de uma arma municiada em trânsito para qualquer CAC. Há uma confusão sobre esse ponto, já que há dois artigos do projeto que dizem respeito ao porte, mas um acaba por anular o outro. O artigo 21-I prevê autorizar o porte de uma arma municiada para cada CAC que tiver obtido o seu certificado de registro há mais de cinco anos. Mas o artigo 21-G estipula que atiradores e caçadores poderão transportar uma arma de fogo curta pronta para uso durante o trajeto entre o local onde a arma fica armazenada e o local de treinamento, prova, competição ou caça. O que deixa confuso é o parágrafo seguinte, que diz que “considera-se trajeto qualquer itinerário realizado, independentemente do horário”.
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Hoje, o porte de arma municiada no deslocamento entre o local de armazenamento da arma e treinamento é permitido junto à apresentação de uma guia de tráfego. Quem não cumpre essa regra, corre o risco de ser detido por agentes de segurança, como a Polícia Rodoviária Federal.
Acabar com essas restrições é uma demanda do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que já chegou a se reunir com o diretor da PRF — junto ao advogado do movimento Pró Armas Brasil, Marcos Pollon — para questionar abordagens a CACs. Na época, atiradores e o próprio deputado criticaram duramente a PRF após uma reportagem da TV Band que mostrou policiais rodoviários abordando CACs que transportavam armas nos carros.
Para Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, “na prática o porte é dado de cara, já que a condição estipulada é completamente abstrata”. Especialistas que monitoram segurança pública alertam que o projeto pode ter graves implicações. “Nós estamos falando de centenas de milhares de pessoas podendo portar arma nas ruas ao mesmo tempo, isso é um perigo muito grande para a segurança pública. E quando a gente fala de CACs a gente sempre fala de armas mais potentes do que as armas comuns”, explicou Pollachi.
Em reportagem, a Pública mostrou que caçadores, atiradores e colecionadores “perdem” três armas por dia no Brasil, após serem roubadas ou extraviadas. Atualmente, o país, já tem mais de meio milhão de armas nas mãos de atiradores civis, que são justamente o grupo com mais armas perdidas ou roubadas.
Projeto acaba com marcação das munições, que permitiu rastrear projéteis do assassinato de Marielle Franco
Outro efeito do PL 3.723/2019 é eliminar a marcação de munições, inclusive as de forças de segurança pública, e das embalagens de munições. O projeto revoga o artigo 23º do Estatuto do Desarmamento, de 2003, que estabelece a obrigatoriedade da marcação de munições a serem comercializadas após a publicação da lei. O texto também elimina a exigência de dispositivo intrínseco de segurança (que previne disparos acidentais) e a identificação das armas de fogo.
Em nota técnica publicada em dezembro, o Instituto Sou da Paz e o Instituto Igarapé afirmaram que “esta alteração fragiliza a rastreabilidade das armas de fogo, beneficiando apenas quem pratica atividades ilegais. Também impede a rastreabilidade de munições roubadas ou desviadas de instituições públicas, material comprado com recurso público e que passa a ser utilizado no cometimento de crimes”.
Mecanismos de rastreio de armas e munições são cruciais para a elucidação de crimes. Foi esse tipo de trabalho que trouxe à tona a informação de que a munição usada na execução da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, em março de 2018, era parte de um lote comprado pela Polícia Federal.
O projeto faz alterações no Estatuto do Desarmamento para incluir capítulos específicos sobre os CACs, regulamentando a atividade desse grupo, autoriza a recarga caseira de munições e também estabelece como “direito de todo brasileiro” as atividades de caça, tiro esportivo e colecionamento de armas de fogo.
A flexibilização nas regras de acesso e controle de armas de fogo são rejeitadas por ao menos 65% da população, como mostrou pesquisa do DataFolha de julho de 2019. Em abril de 2020, quando o STF divulgou o vídeo da reunião ministerial em que Bolsonaro dizia que uma “população armada jamais será escravizada”, uma nova pesquisa DataFolha mostrou que 72% da população rejeitava a declaração do presidente.
Armamentistas queriam ainda mais flexibilização, diz senador
O PL estabelece uma pré-autorização de um mínimo de 16 armas que podem ser adquiridas por ano por CACs, sendo seis de calibre restrito. Quantidades superiores serão regulamentadas pelo Comando do Exército.
Esse ponto retrocede o que havia sido autorizado pelos decretos presidenciais, que permitem que atiradores adquiram até 60 armas por ano, sendo 30 de calibres permitidos e 30 de calibres restritos. Essa mudança é um dos pontos criticados por armamentistas e o senador Marcos do Val.
A avaliação de que o PL, em sua forma atual, é “bem pior” que os decretos foi o que levou o então líder do governo, senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), a dizer que o governo não estaria favorável ao relatório, contou à Pública Marcos do Val. “Para o governo não vai ser uma conquista, vai ser uma derrota. O entendimento da oposição vai ser de que o Bolsonaro ganhou, mas tecnicamente não, ele vai perder”, disse do Val.
A princípio o texto também não havia agradado aos CACs, grupo que, para do Val “praticamente elegeu Bolsonaro”. O senador disse ter se reunido com lideranças e explicado que a preocupação era a estabilidade jurídica. “Eles concordaram, vamos nos preocupar com a questão jurídica mesmo perdendo alguns direitos, mas que nos dê uma segurança jurídica, depois a gente corre atrás de voltar a ter mais acesso, disso ou daquilo”, explicou o senador.
Segundo o relator, ainda não há expectativa de quando ele será pautado no plenário do Senado, caso seja aprovado na comissão.