Com 102 guerras no “currículo”, os Estados Unidos são, provavelmente, um dos países mais envolvidos em ações militares mundo afora. Essa natureza bélica é fomentada pela velha máxima que diz que “o melhor ataque, é uma boa defesa” — só que neste caso, a defesa é dos interesses próprios.
Não é coincidência, portanto, que os Estados Unidos sejam um dos países que mais se beneficiam economicamente de confrontos armados, já que 60 das maiores exportadoras de armas do mundo são estadunidenses.
Para além da venda de munição e armas, o país liderado por Joe Biden também monetiza com contratos de segurança e treinamento militar, o que faz com que muitos membros do Congresso estadunidense entendam as guerras como uma máquina de emprego — e dinheiro. A paz, para os Estados Unidos, poderia custar muito caro.
São esses fatos acima que levam muitos a questionarem a real motivação dos EUA na defesa da Ucrânia, que há anos vive em estado de tensão com a Rússia.
“Não acho que, dessa vez, seja o caso de interesse material, porque os Estados Unidos têm uma dívida de US$ 20 trilhões, e para continuar fomentando essa indústria, com os atuais níveis de juros, teria de sacrificar muitos projetos sociais internos”, diz ao Brasil de Fato a cientista social Joan Davidson, professora na Rollins College. “No final das contas, a gente percebe que, de maneira geral, os custos que envolvem uma guerra e qualquer outra vantagem que os Estados Unidos possam ganhar com ela, simplesmente não valem a pena”.
Mas por que, então, os americanos acabam de enviar US$ 200 milhões em equipamento bélico para Ucrânia? Quem traz a resposta à reportagem é Tom Lairson, professor de Negócios Internacionais, também na Rollins College. “Os interesses americanos dependem da estabilidade internacional, e isso não é de agora”, conta, “por isso tivemos um papel importante em desarmar muitas nações mundo afora, porque se cada nação usasse de sua força para conseguir o que quer, o mundo seria incrivelmente instável, e os Estados Unidos seriam novamente arrastados para uma guerra”.
Desta vez, o uso de forças militares já foi descartado pela Casa Branca de Joe Biden. A estratégia do país é apostar em sanções — e um pacote rigoroso de sanções contra a Rússia está sendo analisado pelo Congresso.
“O problema é que a economia hoje está tão interligada que não demora muito para que todos percebamos que uma sanção machuca tanto o país que impõe, quanto ao que é imposto”, pontua Lairson, que também não poupa críticas às últimas movimentações do presidente Biden. “Acho que ele fez errado em falar em voz alta que não vai usar forças militares, porque essa disputa é de risco e ambos os lados assumem o seu. Ao tirar a carta da força da mesa, isso dá aos russos espaços para traçar outras estratégias, porque só a ideia de os Estados Unidos responderem fisicamente servia de freio para uma investida. Agora, porém, ninguém sabe o que vai acontecer caso a Rússia invada a Ucrânia”.
Embora ninguém descarte a possibilidade real de uma guerra, a professora Davidson acha que é pouco provável que tal conflito aconteça. “[O presidente da Rússia Vladimir] Putin está perdendo popularidade em casa, e essa é uma das razões por sua agressividade agora, porque há quem acredite que ataques militares provocam uma onda de nacionalismo e esse movimento pode beneficiá-lo”.
Essa bomba diplomática estoura num momento sensível para o chefe da Casa Branca, cuja reputação foi arranhada depois da caótica retirada das tropas do Afeganistão, em agosto do ano passado. “Acho que o que aconteceu no Afeganistão pegou muito mal entre a Otan e nossos aliados […] porque fizemos isso sem informar aos nossos aliados da OTAN que havíamos adiantado a data de retirada das tropas”, diz a professora da Rollins College. “Acho que o presidente Biden tem se concentrado mais em alinhar a Europa em relação à Ucrânia e não agir sozinho, tentando ser sensível aos diversos interesses da Europa”.
Davidson avalia que parte do interesse dos EUA em resolver essa situação é possibilitar que Biden e sua equipe voltem a focar nos problemas internos. “O presidente Biden quer se concentrar em reconstruir a economia, no combate à crescente desigualdade no país e na administração da covid-19. De modo que acredito de fato que Putin está intencionalmente levantando a ameaça da Ucrânia agora, em parte para distrair Biden e talvez humilhá-lo também”.
Acompanhando de perto o conflito, Hanna Shelet, editora-chefe do site Ukraine Analytica, não acredita que há pautas partidárias nesse conflito. “Temos o apoio de todos os lados da política americana, basta acompanhar as discussões sobre o pacote de sanções proposto pelos americanos”, diz.
Reconhecendo que a eleição de Biden foi benéfica para a Ucrânia — “foi boa porque o democrata já sabia tudo o que acontecia na região” —, Shelet não fecha os olhos para as expectativas não atendidas. “O presidente americano não apontou um embaixador para a Ucrânia, estamos há dois anos sem um embaixador aqui”.
Salientando que as tensões na área são ininterruptas há anos, a editora-chefe avalia que a mudança do comportamento dos líderes globais é um “chacoalhão”. Para ela, ao longo de todo esse tempo o mundo tem assistido de forma passível o desenrolar da força russa, que constantemente questiona a Otan e seus membros. “Temos esperanças na Ucrânia de que nossos parceiros internacionais realmente entendam que ao proteger a Ucrânia, eles estão, antes de tudo, protegendo a si”, finaliza.
O professor Tom Lairson concorda, e pontua que, se a Rússia for bem sucedida na invasão à Ucrânia, isso pode dar munição a outras ações militares parecidas. “A mais óbvia é a da China atacar Taiwan, e os chineses estão de olho no que acontece agora”, e provoca, “acho que a questão de um milhão de dólares aqui é: se a Rússia tomar a Ucrânia, o que isso nos diz sobre os próximos 25 anos de política internacional? Acho que nos diz coisas ruins. E temos todos muito a perder”.