A série Atypical da Netflix apresenta a história do personagem Sam Gardner, um adolescente autista. Na segunda temporada da série, no episódio No covil do dragão, Sam resolve ter sua primeira experiência em dormir fora de casa, e decide passar uma noite na casa de seu melhor amigo, Zahid.
Para um autista, não é uma tarefa fácil encarar um ambiente diferente daquele em que está acostumado. Durante a madrugada, ele experimenta um intenso desconforto diante de sons, cheiros e luzes não habituais. Ele sai da casa do amigo no meio da noite. Ao ser abordado por um policial em uma viatura, Sam fica nervoso, não responde aos questionamentos do policial e começa a citar palavras que o acalmam. O policial não consegue entender a situação e avisa: “Estou falando com você”. O agente da lei pergunta se ele usou drogas, se está “doidão”. Zahid chega e tenta explicar a situação. Sam não para de falar as palavras que lhe acalmam. O policial realmente não consegue entender a situação e manda que eles se deitem no chão. E grita: “deitem-se no chão”.
Na delegacia, Sam continua muito nervoso, sob o olhar de policiais que também não sabem lidar com pessoas autistas. Naquele momento, somente Zahid entende a situação. O policial que os abordou tece os seguinte comentários: “Não saiam por aí parecendo drogados”, “você avançou contra um policial”. Ele não entende que a suposta “agressão” no autismo não é maldade, é impotência, é angústia por não conseguir expressar o que está sentindo, o que está pensando. O autismo é uma deficiência.
Apesar de ter sido demonstrado por meio de uma obra de ficção, esse fato não é algo distante e impossível de ocorrer em qualquer lugar. Aqui no Brasil, às vezes, os meios de comunicação noticiam casos de profissionais das mais diversas áreas que tiveram ações ora negativas, ora exitosas ao lidar com pessoas com deficiência. Por exemplo, recentemente, no Piauí, um garoto autista faleceu ao se submeter a um procedimento odontológico. O caso está sob investigação da Polícia Civil piauiense. Outro fato recente, porém, exitoso, ocorreu no estado de São Paulo, ocasião em que o soldado Walker Sousa do Corpo de Bombeiros Militar paulista, expressando-se em libras, ajudou no parto de uma mãe, permitindo que ela se comunicasse com a equipe médica.
Será se todos os profissionais da segurança pública brasileira estão preparados para lidar com pessoas com autismo? Ou aptos a utilizar a linguagem brasileira de sinais (libras)? Será se eles sabem o que significa as cores na bengala das pessoas com deficiência visual? Bengala branca significa ausência total de visão, é utilizada por pessoas cegas. Bengala verde é utilizada por pessoas que possuem baixo grau de visão. Bengala vermelha e branca é utilizada por pessoas com deficiências auditiva e visual.
E as repartições policiais possuem formulários adaptados em braile, ampliador de caracteres com voz, scanner digitalizador com voz, impressoras que imprimem em braile, estacionamentos prioritários, instalações com acessibilidade, banheiros adequados para pessoas com deficiência?
O tema serve de reflexão para as outras profissões também. Como esses direitos das pessoas com deficiência são observados e respeitados pelos profissionais da saúde, da educação, do turismo, dos serviços em geral? Nos bares e restaurantes, os garçons brasileiros estão preparados? Manicures e cabeleireiros estão preparados? Você tem noção de como é difícil cortar o cabelo de uma criança com autismo? É um sofrimento, a família sofre junto. E como o assunto vem sendo tratado pela educação física, arquitetura e engenharia? E pelo Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Procuradoria, Advocacia? E pelos jornalistas? E por você leitor?
Por: Zethe Viana Machado, major da Polícia Militar do Piauí e pesquisador.