A pesquisa genética tem proporcionado avanços na busca de possíveis causas do autismo, bem como na detecção precoce e nos cuidados com a saúde dos indivíduos afetados. E os estudos comportamentais têm auxiliado na inclusão social, na convivência familiar e na educação de crianças com transtorno do espectro autista (TEA). Mas ainda há muito a ser conquistado.
Estudo realizado pela Rede Latino-Americana pelo Autismo identificou grande falta de assistência às famílias de pessoas com TEA, por exemplo. “Das 3 mil famílias pesquisadas – sendo mil do Brasil –, 37% não recebiam nenhum tipo de atenção. Isso é bastante preocupante, pois essa população merece e requer assistência abrangente nos diferentes setores do seu desenvolvimento, que vão além de saúde e educação. O estudo também revelou os altos custos sociais e financeiros com os quais essas famílias precisam arcar e que se refletem na sociedade. Por isso, o objetivo tem de ser a inclusão total dessa população”, disse Cristiane Silvestre de Paula, professora da pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisadora do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), durante um seminário on-line realizado em setembro.
Com o tema “A Ciência e o Autismo”, o debate integrou a programação do Ciclo ILP-FAPESP de Ciência e Inovação e teve o objetivo de mostrar avanços na pesquisa genética e comportamental na área, além de discutir as principais necessidades dessa população.
Entre as descobertas apresentadas no evento estão três genes possivelmente relacionados com o desenvolvimento de TEA – TRPC6, RBM14 e PRPF8 –, que foram identificados por pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP sediado no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).
“Hoje já está bem estabelecida a importância da predisposição genética em relação ao autismo, contudo, ainda temos muitas questões em aberto. Existem múltiplos fatores genéticos e ambientais envolvidos. Além disso, a integração desses componentes genéticos e ambientais também é importante como fator de risco”, explicou Maria Rita Passos Bueno, professora do IB-USP e pesquisadora do CEGH-CEL.
De acordo com Passos-Bueno, até agora existem mais de 800 genes candidatos para o autismo. No entanto, as formas monogênicas (que dependem de um único gene) são as menos comuns. “Geralmente, os casos de autismo se encaixam em um modelo em que os pais têm fatores de risco que se acumulam nas crianças e, quando é ultrapassado o que os pesquisadores chamam de limiar, manifesta-se o quadro de autismo.”
O laboratório liderado por Passos-Bueno atende mais de 1.500 famílias de pessoas com TEA e algumas têm sido incluídas nos estudos de genética. Foi a partir da análise de 33 trios (pai, mãe e um descendente com autismo) que os pesquisadores descobriram dois novos genes candidatos (PPRF8 e RBM14) e conseguiram fechar o diagnóstico de autismo para as crianças participantes do estudo.
Em outro projeto, a equipe analisou os cromossomos de 200 indivíduos com autismo. “Decidimos investigar mais a fundo o gene TRPC6, que é importante para a entrada de cálcio nos neurônios, fator essencial para o funcionamento dessas células”, disse.
Após uma pesquisa em banco de dados, o grupo observou que nos indivíduos com TEA havia uma frequência maior de mutação nesse gene do que a encontrada na população em geral, sugerindo que essas variantes do TRPC6 devem contribuir para o risco de autismo.
Estudos in vitro feitos com neurônios derivados de células de polpa dentária revelaram diferenças no funcionamento dos neurônios analisados. “Observamos que quando utilizamos hiperforina – substância que ativa especificamente esse canal de cálcio formado pelo TRPC6 – ocorre o resgate da morfologia e do funcionamento normal dos neurônios derivados desses pacientes”, contou.
Para Passos-Bueno, além de propiciar descobertas cientificamente relevantes, a importância dos estudos genômicos está em dar retorno para as famílias. “São de extrema importância os investimentos para que se continuem os estudos de caracterização da arquitetura genética do autismo. Com eles esperamos aprimorar o diagnóstico. Atualmente, conseguimos concluir diagnósticos genéticos em pelo menos 10% dos casos. Outras perspectivas desses estudos estão em entender melhor a patofisiologia do transtorno. E, o que todos nos desejamos, é um dia poder desenvolver estratégias terapêuticas”, afirmou.
Fada do dente
Em outro projeto conduzido na USP, que contou com mais de 400 dentes de leite doados por pacientes de todo o país, os pesquisadores conseguiram avançar no entendimento de como o TEA pode se manifestar em células cerebrais, como neurônios e astrócitos. A análise foi feita em células cerebrais derivadas da polpa dentária de crianças com autismo grau 3 e que não tinham nenhum gene relacionado ao TEA.
“Os neurônios derivados de pacientes autistas tinham menos sinapses químicas e elétricas, ou seja, funcionavam de maneira alterada. Também observamos que um dos principais neurotransmissores [glutamato, um dos mensageiros químicos liberados pelos neurônios], secretado em abundância no cérebro, era liberado em menor quantidade pelas células dos indivíduos com autismo”, afirma Patrícia Beltrão Braga, professora e pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) e da Plataforma Científica Pasteur-USP.
Braga também analisou os astrócitos, células cerebrais que, além de comporem a barreira hematoencefálica (que protege o cérebro de toxinas e patógenos), são responsáveis pela comunicação de todo o sistema nervoso com o sangue.
“Os astrócitos não tinham sido muito estudados no contexto do autismo até então. Na nossa pesquisa, realizada em cultura celular, vimos que os astrócitos de indivíduos com TEA funcionavam de maneira tóxica, produzindo uma quantidade aumentada do que chamamos de espécies reativas de oxigênio. Ou seja, essas células não eram capazes de fazer a limpeza do sistema nervoso como normalmente fazem em indivíduos neurotípicos”, relatou.
Segundo a pesquisadora, outra função dos astrócitos é remover o excesso de glutamato do cérebro. No estudo, os pesquisadores observaram que esse papel também estava comprometido nas células das crianças com TEA.
O grupo analisou ainda quais moléculas inflamatórias estavam sendo produzidas pelos astrócitos desses pacientes. “Nesses casos, havia no cérebro grande produção de uma citocina pró-inflamatória chamada interleucina-6. Essa foi a primeira vez que alguém mostrou que poderia estar acontecendo um perfil de neuroinflamação no cérebro de crianças com autismo e que isso poderia ser compatível com todas as alterações que a gente estava vendo até então”, afirmou.
Na fase seguinte do estudo, os pesquisadores misturaram in vitro neurônios e astrócitos derivados de um indivíduo neurotípico com os de um indivíduo com TEA e observaram que isso fazia com que o número de sinapses aumentasse, passando para uma quantidade próxima à observada em pessoas sem o transtorno.
Treinando a atenção
Em um estudo apoiado pela FAPESP, pesquisadores do Mackenzie e colaboradores demonstraram como o treinamento com jogos computacionais pode fazer com que questões ligadas à atenção progridam em crianças com TEA.
O projeto envolveu 26 crianças entre 8 e 14 anos, submetidas a um treino computadorizado progressivo para atenção. O modelo, denominado CPAT, foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Tel Aviv (Israel), em parceria com psicólogos e pesquisadores da Universidade de Birmingham (Reino Unido), e tem foco em três tipos de atenção: sustentada, seletiva e executiva.
Por meio de jogos de computador e valorizando o lúdico, o programa vai sendo regulado de acordo com o avanço de cada criança. “A ideia é que ela prossiga nas atividades de acordo com suas necessidades”, disse de Paula.
As crianças passaram por um protocolo vasto de avaliação e depois, durante dois meses, receberam durante 45 minutos o treinamento do CPAT ou uma intervenção controle. Ao final de dois meses, as crianças foram reavaliadas. Uma terceira avaliação foi conduzida três meses após a conclusão das interações. Além da atenção, houve melhora em questões correlacionadas, como desempenho escolar (matemática, leitura e escrita) e inteligência (teste de QI), em relação ao grupo controle.
“É um resultado que nos deixa muito contentes, pois é difícil encontrar uma intervenção de baixo custo, lúdica, capaz de trazer bons resultados e de ser aplicada em larga escala nas escolas”, afirmou de Paula.
Como destacou a professora do Mackenzie, não existe um tratamento único para os sintomas centrais do autismo, que envolvem déficits relacionados a habilidades sociais e de comunicação, bem como comportamentos estereotipados e repetitivos. “Por isso é tão importante trabalhar a inclusão social, escolar, de saúde e na sociedade como um todo, por meio de diferentes áreas de tratamento e cuidado. Nesse sentido, essa população necessita de auxílio não apenas no que se refere aos sintomas centrais do autismo, mas também em aspectos como a atenção”, afirmou de Paula.
A pesquisadora ressaltou ainda que pelo menos 50% dos indivíduos com TEA têm déficit, dificuldades ou questões relacionadas com a atenção. “Estudos mostram que 30% dessas pessoas tinham diagnóstico de transtorno de déficit de atenção (TDAH) e nesses casos há maior prejuízo funcional”, disse.
O seminário “A Ciência e o Autismo” pode ser conferido na íntegra em: www.youtube.com/watch?v=cji0ST055eU.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.