Ananda Soares Rosa*
A Inquisição, também chamada de Santo Ofício, era uma instituição formada pelos tribunais eclesiásticos no século 13 para investigar e julgar sumariamente aqueles acusados de se desviarem das pregações da Igreja Católica; a estes cabiam as alcunhas hereges, bruxas e feiticeiros, por cujos crimes deveriam ser queimados em fogo flamejante.
Caso não saibam, a Inquisição não está enterrada no passado, ela revive de formas diferentes. Desta vez quem queima é a Cultura: as peças de teatro, os saraus, as viradas culturais, os prédios históricos, os conselhos de participação popular. Queimam, literalmente, nas fogueiras acessas da Inquisição do século 21.
A Inquisição do século 21 consome a Cultura, e consequentemente o Patrimônio Histórico que nela habita. O Patrimônio Histórico e Artístico nacional, cuja preservação deve ser de interesse público, diz respeito ao entendimento de uma sociedade enquanto tal.
Se a Cultura em Araçatuba continuar negligenciada pelo poder público, veremos muito de nossa história ser transformado em cinzas pelas fogueiras da inquisição.
Na última terça (13) recebi por WhatsApp o link da reunião online do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Araçatuba (CMPCA). Conselho Popular. Formado por cidadãos araçatubenses voluntários. Para discutir a Cultura em Araçatuba.
Dentre os assuntos a serem abordados na pauta do dia, constavam, entre outros, o Livro do Tombo e Instrução Técnica; Destombamento; Novo Plano Diretor de Araçatuba.
Embora já tenha recorrido aos jornais para fazer um apelo e alguns esclarecimentos sobre a situação alarmante do Patrimônio em Araçatuba, após assistir à reunião, este artigo vem mais direto como um grito de alerta aos cidadãos araçatubenses: O que fizeram com a Cultura de Araçatuba?
Duas casinhas geminadas na rua Campo Sales – casas de “porão alto”, “de frente para a rua”, construídas sobre o alinhamento da calçada, com recuo de apenas um dos lados e reduzido ao mínimo, extremamente representativas da transição entre os velhos sobrados e as casas térreas, herdados do período colonial brasileiro – foram simplesmente destombadas pela prefeitura municipal (se é que eram tombadas), sem passar pelo juízo do Conselho e Setorial do Patrimônio.
Explico: se houvesse uma proteção, aquelas edificações não poderiam se descaracterizar ou mesmo serem botadas abaixo. Elas são parte da história de Araçatuba. Com o destombamento, em havendo proteção e ela sendo retirada, as casinhas correm o risco de desaparecer. Desaparecendo, lá se vai parte de nossa história.
Fogueira.
Por falar em desaparecimento, fiquei sabendo ao assistir à reunião que o Livro do Tombo de Araçatuba sumiu! PUF! Desapareceu!
Inquisição.
Explico novamente: nos Livros do Tombo são inscritos os bens culturais de valor histórico, arquitetônico, paisagístico, artístico, enfim, bens com interesse histórico que carregam importância para uma determinada comunidade, ou seja, que devem estar tombados – preservados.
No de Araçatuba, desaparecido, deveriam constar dentre outras inscrições, a antiga Oficina de locomotivas da NOB, a casa do engenheiro chefe da Estação, a própria Estação, já que houve o protocolamento de um pedido de tombamento por parte da sociedade…
Deveria constar no Livro do Tombo, também, algumas instruções técnicas – estas redigidas por profissionais capacitados para tanto – com, como o próprio nome já diz, instruções sobre a maneira de lidar no trato desses bens culturais inscritos. Como restaurá-los? A resposta, as instruções técnicas do Livro Tombo deveriam fornecer, mas elas inexistem e por isso os membros do Conselho proponentes da pauta clamavam por sua elaboração no novo Livro do Tombo.
A antiga Estação Ferroviária, já tratada por mim em outros artigos, foi reconhecida pela sociedade araçatubense enquanto bem cultural relevante para a comunidade. No entanto, a deliberação do pedido de tombamento ainda não foi emitida e a Estação Ferroviária da Avenida dos Araçás corre o iminente perigo de parar nas fogueiras da Inquisição. Lembremos que, ao ser de interesse público, o Patrimônio Histórico carrega consigo importantes informações sobre uma cidade, seu povo, além de servir como inesgotável fonte de pesquisa.
É público, da mesma maneira, o Conselho já citado, representativo da sociedade para discutir Cultura e ser deliberativo às questões que a Secretaria Municipal de Cultura dispõe, mas que esta insiste em negligenciar. Negligenciando o Conselho, o poder público araçatubense sentencia a Cultura ao fogo. Sentenciando a Cultura, o povo também está condenado ao julgamento da Inquisição.
Apontados os fatos ficam as reflexões: onde está nossa cultura? O que fizeram com ela? O que estão fazendo com nosso patrimônio construído? Qual o destino de nossa Estação Ferroviária? Por que o poder público não delibera algo que foi decidido pelo povo? O que será de um povo sem cultura?
Eis as respostas: Inquisição.
Estamos condenados à fogueira.
Ananda Soares Rosa, docente, Arquiteta e Urbanista e Mestra em Arquitetura e Urbanismo*