Um grupo liderado por pesquisadores do Instituto Butantan e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) realizou o primeiro sequenciamento genético de uma serpente brasileira: a jararaca. O estudo, publicado na revista científica PNAS, revelou que nove dos genes responsáveis pela produção das toxinas do veneno na jararaca (Bothrops jararaca) evoluíram, provavelmente, de genes que tinham outras funções no ancestral do animal.
“Com o sequenciamento do genoma da jararaca, pudemos identificar marcadores que permitiram comparar os genes que produzem toxinas com os que estão na mesma posição em genomas de outros animais, como serpentes sem veneno, lagartos e anfíbios. Observamos que nove dos 12 tipos de genes que produzem peçonha na jararaca eram muito parecidos com aqueles encontrados na mesma posição da sequência de DNA dessas outras espécies. Isso nos permite afirmar que a maioria dos genes de toxina provavelmente surgiu a partir de elementos que já existiam naquele local do genoma do ancestral comum a todos esses animais”, explica o coordenador do estudo e pesquisador do Instituto Butantan, Inácio de Loiola Meirelles Junqueira de Azevedo.
De acordo com a pesquisa, os genes exerciam papéis fisiológicos em um ancestral comum de todas essas espécies. Em algum momento, eles possivelmente começaram a apresentar uma atividade semelhante à de toxinas, foram selecionados para esse caminho e, assim, perderam a função original. “Esse estudo trouxe elementos para entender a evolução das toxinas e quais foram os mecanismos que levaram alguns genes a serem recrutados para exercer a nova função como produtores de componentes de veneno”, conta Diego Dantas Almeida, um dos autores principais do estudo, que foi realizado durante seu doutorado no Butantan com apoio da FAPESP.
O sequenciamento mostrou ainda que dois genes que codificam importantes toxinas provavelmente se originaram a partir de duplicação. Com uma cópia realizando as funções originais do gene, é normal em qualquer organismo que a outra possa evoluir mais livremente para exercer diferentes atividades.
No caso das serpentes da família da jararaca, essas cópias podem ter sofrido alguma pressão seletiva para gerar duas famílias de toxinas que respondem pela maior parte da ação do veneno, a metaloproteinase, conhecida pela sigla SVMP, e a fosfolipase A2 (PLA2). A conclusão do sequenciamento rebateu a hipótese até então predominante de que a maioria dos genes produtores de peçonha nas jararacas tinham se originado dessa forma.
“Apenas nessas duas famílias de genes produtores de toxinas conseguimos demonstrar que ainda existem genes ‘ancestrais’ não tóxicos, presentes no código genético, logo ao lado das toxinas. Para as outras, os ancestrais se perderam completamente, provavelmente se transformando em geradores de toxinas”, afirma Vincent Louis Viala, outro autor principal do estudo, realizado durante seu pós-doutorado no Butantan.
Não foi possível determinar a origem de apenas uma das 12 famílias de genes que codificam toxinas na serpente.
Esforço de pesquisa
O grupo tenta realizar o sequenciamento do genoma da jararaca desde 2013. A serpente é responsável pela maior parte dos acidentes ofídicos na região Sudeste do Brasil, e é uma das mais estudadas. No entanto, os cientistas ainda não tinham informações fundamentais da origem do veneno, que o sequenciamento genético agora trouxe.
Mais do que saber os genes existentes em um organismo, para obter um genoma completo é preciso montá-lo na sequência correta. Essa é uma das partes mais complexas do trabalho, uma vez que o sequenciamento gera uma grande quantidade de informações, que depois precisam ser processadas por meio de ferramentas de computação.
Apenas nos últimos anos, após combinar diversos métodos, o grupo conseguiu obter uma montagem satisfatória do genoma, com a colaboração de pesquisadores da Ohio State University, nos Estados Unidos. O genoma agora está disponível on-line para quem quiser estudá-lo.
Outras respostas importantes foram obtidas a partir do trabalho. Em 2009, uma análise realizada por pesquisadores japoneses de alguns genes de veneno da Protobothrops flavoviridis, serpente peçonhenta da mesma família da jararaca (Viperidae), havia mostrado que o gene que produzia a toxina VEGF-F, também presente na cobra brasileira, era provavelmente resultante de uma duplicação do gene VEGF-A. O grupo brasileiro mostrou que é mais provável que ele tenha se originado de uma outra família de genes, conhecida na literatura científica como “PGF-like”.
O grupo reuniu ainda mais evidências de que os peptídeos potenciadores da bradicinica (BPP), que são a base do medicamento para hipertensão arterial captopril, provavelmente têm origem no gene CNP, produtor dos chamados peptídeos natriuréticos tipo-C e que está presente em outros vertebrados, inclusive em humanos.
Os pesquisadores agora trabalham na obtenção de versões mais refinadas do genoma da jararaca, assim como de outras famílias de serpentes produtoras de veneno. Com isso, esperam encontrar novas moléculas de veneno e relacioná-las com proteínas de relevância na fisiologia de outros organismos.