Danton Leonel de Camargo Bini
Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA)
Mestre e Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP)
Pós-Doutor em Sociologia Rural pelo Centro de Estudios de la Argentina Rural (CEAR)
Antes da expansão da lógica capitalista de propriedade, uso e gestão das terras localizadas no Oeste Paulista, eram os indígenas caingangues que viviam e dominavam essa porção territorial. Até o início do século XX, em uma relação de equilíbrio com a natureza, os caingangues não desenvolviam mudanças acentuadas em suas terras. Esse processo de territorialidade significou que eles não destruíram a natureza no que hoje é a região de Araçatuba.
Embasados por Santos & Silveira (2001), entendemos que o que se constituiu foi:
“… a imposição à natureza de um primeiro esboço de presença técnica, pois ritmos e regras humanas buscavam sobrepor-se às leis naturais. Todavia a natureza comandava, direta ou indiretamente, as ações humanas. A precariedade ou a pobreza das técnicas disponíveis constituía o corpo do homem como principal agente de transformação tanto na produção como no enfrentamento das distâncias, e ainda aqui a natureza triunfa e o homem se adapta. Era um período de acomodação e morosidade na relação com o meio, pois permitia-se que a floresta voltasse a crescer durante algumas décadas, antes do plantio recomeçar num mesmo lugar” (SANTOS & SILVEIRA, 2001, p. 29).
Desde antes da chegada dos portugueses até o início do século XX, os caingangues mantiveram seus domínios no que hoje é o extremo oeste paulista. No século XVI, segundo Sérgio Buarque de Holanda ([1957], 1994),
“A permanência de caminhos numerosos que da vila de São Paulo conduziam, ora às minas gerais, ora ao sul, onde se estabeleceriam as primeiras reduções de guaranis, parece ter fixado, muito mais do que o rio Tietê, as direções iniciais da expansão bandeirante. O valor dos rios estava, aparentemente, menos em servirem de vias de comunicação do que de meios de orientação” (HOLANDA, [1957], 1994, p. 34).
Já no século XVII, com a especulação de haver ouro no Mato Grosso, o Tietê se tornou rota de travessia. Nesse contato com os paulistas, os caingangues resistiram às bandeiras (monções) e às tentativas oficiais de colônias militares, como as de Avanhadava e Itapura no Tietê. O baixo Tietê apresentava índice de alta insalubridade e mais de uma vez correntes povoadoras tiveram de recuar em suas tentativas de se estabelecerem em tais áreas.
Segundo Mussolini (1946), os caingangues
“… não pertenciam aos grupos dos guaranis e habitavam principalmente os estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (…) Tratam-se de hábeis caçadores e também eram nômades” (MUSSOLINI, 1946, p. 24 apud MANFREDI NETO, 1995).
Manfredi Neto (1995) diz que
“… habitavam em cabanas cobertas de folhas de palmeiras, nunca fazendo divisões internas. (…) criavam galinhas, domesticavam animais silvestres, tendo o cão como predileto. Viviam sem armamento sofisticado, com grandes arcos de pontas frequentemente revestidos de ferro; colhiam o mel selvagem, cortavam palmito cuja medula consumiam, utilizavam fibras vegetais para tecer e fabricar cestas; as culturas de feijão, abóbora e milho eram as mais comuns: sua cultura era feita em terrenos incendiados e não se sabe quanto tempo permaneciam em cada local, pois o nomadismo era acentuado entre eles” (MANFREDI NETO, 1995, p. 28).
Mas com a expansão da lógica capitalista de propriedade da terra, essas terras indígenas foram ocupadas e os caingangues foram praticamente dizimados. Desde meados do século XIX, os conflitos com os invasores paulistas se intensificaram. Ofendidos com a ocupação de suas terras nas proximidades do atual município de Bauru, os caingangues praticaram depredações e assassinaram dezenas de pessoas (FALLEIROS, 1999). Devido a essa resistência, findou-se o século e os interessados na posse das terras não conseguiram adentrar e anexar o Oeste com a pretendente introdução da monocultura cafeeira. A partir de 1901, a luta se torna mais violenta. Em 1904, com o lançamento do decreto de concessão de construção de uma ferrovia de ligação ao Mato Grosso a partir de Bauru, a caça aos caingangues e a limpeza do futuro caminho dos trilhos se inicia de forma rápida e sanguinária.
A fixação de novas construções instaladores de novas funções ao território do Oeste Paulista está associada a um processo de transformações recorrentes às escalas estadual, nacional e mundial. Assim, a dizimação dos caingangues é parte de um desencadear de conquistas territoriais impresso pelo sistema capitalista, no Brasil, desde sua fase comercial. Dessa forma, para apreendermos o significado da instalação de um meio técnico sobre o “sertão desconhecido” paulista é importante se analisar o desenrolar da formação socioespacial brasileira no momento da expansão da cultura cafeeira.
A criação do Brasil e a colocação descontínua em seu território de meios técnicos (mecanização do território) provêm do processo de construção do capitalismo comercial em grande escala mundial. Estabelecidos em função da demanda do mercado externo, os sucessivos meios técnicos instaurados como zonas econômicas no território nacional, percorreram os períodos manufatureiro (1620-1750), da Revolução Industrial (1750-1870) e industrial (1870-1945), como um conjunto de ‘penínsulas’ da Europa (SANTOS & SILVEIRA, 2001). Essas regiões mantinham uma relação primordial com o estrangeiro e quase nenhuma entre si. Daí o porquê de Santos & Silveira (2001) falarem do território brasileiro nesse período como um arquipélago.
A atividade da cana-de-açúcar (Zona da Mata Nordestina), aurífera (Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso), do cacau (Bahia), da borracha (Amazônia) e cafeeira (São Paulo), mesmo tendo criado em suas regiões algumas cidades, não construíram entre elas nenhum tipo de integração. A ausência dessa rede nacional de comunicação e circulação caracteriza esse momento territorial ou tempo espacial brasileiro como o período da integração incompleta (SANTOS & SILVEIRA, 2001).
Somente por volta de 1850, preocupações referentes ao isolamento do interior brasileiro levaram o governo imperial a começar a programar um plano de conexões entre as regiões. Relacionado à esse instante, Santos & Silveira (2001) comentam que
“Os portos, lugar de solidariedade entre navios, rotas de navegação e zonas produtivas, as ferrovias, as primeiras estradas de rodagem e usinas de eletricidade permitiram a constituição dos primeiros sistemas de engenharia no território brasileiro” (SANTOS & SILVEIRA, p. 33).
No que se refere ao Oeste (Mato Grosso), ocupado durante as bandeiras e monções, originou-se como grande promessa no período aurífero, mas decaiu no afastamento das culturas pastoril e da erva-mate. Influenciado de início por rotas nordestinas, a pecuária bovina mato-grossense entra o século XIX grandemente direcionada ao circuito econômico argentino, paraguaio e boliviano. Sendo os caminhos “construídos” (descobertos) limitados às rotas que a natureza oferecia, o desenvolvimento pastoril encontrou na fluidez dos cursos das águas da bacia platina o melhor percurso para a comercialização de suas mercadorias. Com a convergência dessa vazante fora de nossas fronteiras,
“… fácil é concluir pela disparidade do balanço, posta em evidência, desde logo, a supremacia indiscutível e formal, da força notável que conduz para o sul, para as terras estrangeiras, numa atração fortíssima, o sistema constituído nessa zona” (SODRÉ, 1990, p. 146).
Enquanto no Brasil as ferrovias estavam limitadas há alguns trechos isolados no litoral e uma rede nacional dessas estradas não passava de estudos, a Argentina começava a construir a sua rede ferroviária (1857) principalmente direcionada ao norte do país, em “simultaneidade com a difusão das estradas de ferro em países como a Inglaterra (1825), França (1841) e Estados Unidos (1869)” (SILVEIRA, 1999, p. 48). Isso potencializou a influência externa sobre o território mato-grossense, acelerando o impasse sobre a hegemonia dos fluxos (fluviais e ferroviários) dessa região brasileira, fazendo eclodir a Guerra do Paraguai.
Após a vitória no conflito – década de 1870 -, intermediado pelos interesses econômicos britânicos, o governo brasileiro, em aliança com a elite cafeeira paulista, inicia a implementação do projeto integrativo entre a província de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e alguns países da América do Sul (Paraguai e Bolívia). É nesse contexto de integrações regionais e da expansão da demanda por terras para o plantio do café que acontece a invasão das áreas sob o domínio caingangue na atual região de Araçatuba. Após o conflito os caingangues ficaram limitados ao isolamento até os dias atuais em duas aldeias indígenas localizadas nos municípios de Arco-Íris e Braúna.
Este trabalho é parte do livro publicado em formato E-book pelo autor do artigo. Com o título A Formação Socioespacial da Noroeste Paulista, o livro pode ser comprado do site da Editora Educonsultoria, https://www.educonsultoria.com/